Aborto: terreno fértil no reinado da hipocrisia

Amiga, você me pediu minha opinião sobre o porquê do segundo turno nas eleições para presidente. Coisa complicada, mas vou me arriscar. Tenho lido muitas opiniões, postei no blog a do jornalista Luiz Carlos Azenha, do blog Vi o Mundo. É difícil se orientar no fragor da batalha, em meio ao desatar das paixões e dos interesses, principalmente quando você não tem uma posição solidamente pré-definida nos diversos campos de luta.
Alguns analistas atribuem grande peso pelos votos retirados, na última hora, de Dilma Rousseff, adiando o desfecho para 31 de outubro, às questões religiosas, especialmente ser contra ou a favor do aborto, um dos componentes da campanha suja feita contra a candidata do presidente Lula pela grande imprensa, ou a chamada velha mídia, ou seja, a partir da TV Globo, revista Veja e os jornalões Folha de S.Paulo, Estadão e O Globo. Campanha suja feita também através de muitos sítios/sites/blogs/portais na Internet.
Penso que tais analistas podem estar certos. Embora eu acrescente que tal fator deve ter sido reforçado pelo discurso moralista de Marina Silva, terceira via cujo peso acabou sendo bem maior do que o previsto pela maioria dos observadores (inclusive este blogueiro que vos fala) e pelas pesquisas. Não podemos esquecer que ela chegou aos quase 20% dos votos válidos e arrancou 31% no Rio de Janeiro, dando uma ajuda valiosa à candidatura de José Serra, representante dos setores mais à direita.
Quem da classe média nunca fez/pagou/ajudou a fazer um aborto?
Minha amiga, tem coisa que me intriga. O aborto, por exemplo. É um terreno fértil para o festival de hipocrisia que assola nossas relações sociais e desemboca, com todo estrondo, num processo eleitoral. Acredito, piamente, que qualquer pessoa com um razoável nível de informação, um razoável nível de entendimento, é a favor da descriminalização do abordo, ou, no falar claro, é a favor do aborto. É uma posição humanista, de saúde pública, contra a morte anunciada de milhares de mulheres pobres por este Brasil afora. Todos os movimentos sociais, não religiosos, as feministas, todos são a favor do aborto. Criminalizar o aborto só não prejudica os ricos e os meio-ricos, que o praticam a granel em clínicas caras, inassecíveis aos pobres. Faço um desafio: quem da classe média nunca fez/pagou/ajudou a fazer um aborto?
Andaram e andam espalhando pelos becos, pelos corredores e, principalmente, pelos subterrâneos, que Dilma Rousseff é a favor do aborto. Ela diz e repete com todas as letras que é contra. E desmente a frase botada em sua boca e espalhada por aí: “Nem Cristo me tira essa vitória”. José Serra também, claro, se diz contra o aborto. Aliás, na quarta-feira, dia 6, num encontro do PSDB em Brasília, apesar de político tarimbado, já acostumado à rotina do fingimento em público, ele se enrolou todo, ia dizer que era contra, disse que era a favor, e corrigiu logo em seguida. É o que se chama ato falho. Já imaginou o estardalhaço que nossa velha mídia faria se tal incidente ocorresse com Dilma?
Na verdade, amiga, vou te dizer agora o que estava doido pra dizer desde que comecei esta carta-opinião: estou convencido – trata-se de uma convicção íntima – que tanto Dilma como Serra são a favor do aborto, mas não podem declarar isso, porque simplesmente iriam perder votos. Santa hipocrisia! Faço uma incursão pelos delírios da utopia: já pensou se nossos dois candidatos a presidente fizessem um pacto e anunciassem que são a favor do aborto? No mínimo, seria uma ajudazinha beleza para clarear um pouco a cabeça do povo brasileiro. Mas, nem pensar, corta isso!
(A situação de Marina é diferente. Ela tenta disfarçar, propondo um plebiscito, com medo de se queimar perante os movimentos sociais e as camadas consideradas mais esclarecidas. Creio que ela seja realmente contra o abordo, em decorrência de seu engajamento religioso, como evangélica praticante, posição que a gente pode discordar, mas que deve ser respeitada).
Chega de tratar o povo brasileiro como debilóide
Então, minha amiga, tem ainda o papel da maratona de denúncias de corrupção tentando envolver Dilma/Lula, que deve ter tido um peso pequeno na perda de votos, já que a credibilidade e o alcance da velha mídia parecem estar em baixa entre o chamado povão. No caso de tais denúncias – a maioria não comprovada, mas repetida todo santo dia -, o comportamento de Marina também ajudou a reforçá-las. Ainda mais que ela teve um mérito singular: conseguiu atrair pelo menos uma pequena parte da juventude, segmento que parece não estar nem aí para eleição, o que é um sintoma preocupante da despolitização geral.
Por outro lado, tenho a impressão que Dilma/Lula e seus partidários conduziram a campanha com a certeza da suficiência dos êxitos econômicos e sociais do governo. Bastava alardeá-los para a grande maioria dos eleitores votar na candidatura lulista. Visão que, não podemos esquecer, se mostrou correta, porém insuficiente para ganhar no primeiro turno, devido ao sucesso (providencial para Serra) de Marina Silva, travestida de verde e acariciada pela mídia. A jornalista baiana Joana D’Arck falou, em comentário sobre o artigo de Azenha, da necessidade de se fazer agora o debate político, visando esclarecer o que cada um dos candidatos representa. Afinal, chega de tratar o povo como debilóide, como diz um amigo meu de Curitiba.
No mais, minha querida amiga, quero te fazer minha declaração de voto: entre Dilma e Serra só há um caminho para quem tem um mínimo de comprometimento com a democracia e os interesses populares: votar em Dilma. Pois, apesar de muitos pesares – em especial a desmobilização do povo, promovida TAMBÉM pelo governo de Lula -, é a melhor opção em busca de: menos repressão aos movimentos sociais; mais inclusão do povo pobre; avanço na luta pela democratização dos meios de comunicação; e mais avanços rumo à integração soberana da América Latina.
PS: Amiga, a bola da vez da campanha suja da velha mídia agora é a Petrobras. Depois da quebra de sigilo, caso Erenice e aborto, os ataques voltam-se para nossa estatal do petróleo, que, aliás, sempre esteve na mira da direita. Até 31 de outubro é o vale-tudo na tentativa, meio desesperada, de impedir a vitória de Dilma/Lula.
(*) Jadson Oliveira é jornalista baiano e vive viajando pelo Brasil, América Latina e Caribe. Atualmente está em São Paulo. Mantém o blog Evidentemente (blogdejadson.blogspot.com).

4 comentários em “Aborto: terreno fértil no reinado da hipocrisia”

  1. Boa a materia. É importante aproveitar o gancho da campanha para botar o tema do aborto em pauta na sociedade, para tentar desmistificar o assunto.
    Esta questao só pode ser resolvida quando for devidamente entendida. É preciso ler muito, pesquisar bastante a fundo, por todos os angulos, para que se possa emitir uma opiniao razoável sobre o assunto, dado a sua complexidade.
    A proposta da Marina de chamar um plebicito sobre o aborto é tao hipócrita quanto a sua candidatura. É claro que o povo brasileiro nao tem elementos para julgar o assunto num plebicito. Vai ser contra a legalizaçao do aborto por puro preconceito religioso. A Marina sabe disso e por isso faz esta proposta hipócrita.
    Eu sou a favor do aborto, por que é uma questao de saúde pública, como o texto bem aborda.
    Do que já li sobre o assunto, apóio o aborto até a 12a semana de gravidez, período em que o feto ainda nao tem seu sistema nervoso central formado, sendo portanto, desprovido dos sentidos normais humanos.
    Neste período sou a favor do aborto legal, seguro e feito na rede hospitalar pública.

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