Há farta documentação dando conta das atrocidades cometidas pelos colonizadores ocidentais contra nossos povos originários, nos diversos continentes, inclusive no continente americano. Nas periferias urbanas seus jovens e adultos indígenas perambulam sem destino, tornando-se presas fáceis de trabalhos análogos a escravidão, ou reféns da dependência alcoólica e de drogas.
Sorte semelhante continua reservada aos demais povos originários, inclusive nas Américas do Norte, Central e do Sul. No caso dos Estados Unidos, são diversos os registros históricos dos massacres cometidos pelos colonizadores comprovando também a devastação de suas terras e territórios. No Canadá, têm sido denunciados os maus tratos cometidos contra os indígenas até pelos cristãos. Em sua recente visita a este país, o Papa Francisco pediu perdão aos povos indígenas pelos malfeitos de que têm sido vítimas. De volta a Roma, ainda em viagem, em entrevista concedida a jornalistas, o Papa Francisco não hesitou em denunciar o genocídio praticado pelos cristãos contra os povo originários do Canadá (Cf. https://www.vaticannews.va/pt/
Nas linhas que seguem, voltamos nosso olhar especial para apenas um desses povos, os “Waimiri-Atroari”, situados no Amazonas.
Como os demais povos originários de outras regiões, os Waimiri-Atroari vivem há séculos na mesma região amazônica. Com suas organizações, com sua cultura, com suas crenças, com seus rituais, os Waimiri-Atroari viveram em paz até por volta de 1830, quando começaram a ser invadidos e perseguidos por caçadores, castanheiros, seringueiros, madeireiros, garimpeiros… Desde então, resistem bravamente. Tal a sua bravura nas ações de resistência e autodefesa que os brancos invasores os denominavam como “os índios mais ferozes do Brasil”. Quem vivia sossegado em seu território, e, tendo passado a ser agredido, tinha o dever de se defender, com seus meios próprios. Esta situação nos faz lembrar um dito satírico: “que bichinho malvado! a gente mexe com ele e ele morde”…
É dessa forma que os Waimiri-Atroari em numerosos episódios tiveram e têm que enfrentar uma luta renhida e desigual, não apenas contra invasores individuais ou em pequenos grupos, mas as próprias investidas do Exército, em especial no episódio da construção da BR 174 (eles a chamam “BR um, sete, quatro”), por construção em seu território, entre 1968 e 1988. Quem está de fora e de longe não percebe a gravidade do que estava acontecendo – uma verdadeira desgraça para os Waimiri-Atroari -, na medida em que esta BR introduziria uma série de consequência e ameaças:
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Escancarava aos invasores todos os meios de agressão ao seu território;
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Passaria a permitir livre acesso a garimpeiros e madeireiros e grileiros;
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Sua vida cotidiana passava a ser gravemente alterada, em seu dia-a-dia, em sua organização, em seus costumes, em sua cultura;
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A BR 174 se torna a porta de entrada de doenças letais para os nativos, que, vivendo isolados dos brancos, não dispunham de recursos, nem de acesso a serviço de saúde regulares…
Com efeito, por conta de sucessivas e continuadas investidas de toda sorte de invasões e de ataques, às aldeias perdem o sossego por causa das ameaças; cresce o número de vítimas de perseguições, de ataques, de abusos de mulheres e adolescentes, tendo os nativos que enfrentar todo tipo de contaminação (gripe, malária, sarampo e outros males, sem que possam recorrer a vacinas e tratamentos, dado o grau de isolamento da “civilização”. Tem que conviver com vários tipos de crueldades infligidas pelos não-Índios provocadas pela exploração desordenada de garimpos, a poluírem o subsolo, o solo, os rios, os peixes, as plantas e os próprios nativos. Têm que enfrentar a desenfreada extração de madeira, a derrubada da mata, com tudo o que representa tal devastação.
Impedidos de viverem em sua própria terra, sentem-se forçados a se afastarem: de início, os Waimiri-Atroari viviam a cerca de 50km de Manaus; depois tiveram que viver a cerca de 300 km de Manaus. Hoje vivem na fronteira entre Amazonas e Roraima.
Conforme estimativa feita no último quartel do século XIX, os Waimiri-Atroari chegavam a cerca de dois mil habitantes, apenas nos limites correspondentes a um rio. Em 1983, tal população era estimada em cerca de apenas 300 habitantes
Marcados por um profundo “ethos” comunitário – extensivo aos demais povos originários, os Waimiri-Atroari imprimiram em sua organização uma dinâmica de formação de um sólido consenso de modo que despendem largo tempo no exercício interno do diálogo com o propósito de maturar uma posição de consenso, diante dos impasses e em razão da tomada de decisões.
Aprendendo com os povos originários
Do modo de vida e da saga martirial dos povos originários temos muito a aprender. Aprendamos com eles que somos parte viva da Mãe Natureza, de sua espiritualidade cósmica, que nos faz sentir irmanados, não apenas entre nós, humanos, mas também com toda a comunidade dos viventes: minerais, plantas e animais. Como habitantes da Terra, compartilhamos responsabilidades recíprocas, quanto às nossas origens e destinos. Aprendemos com eles que não somos donos, mas filhos da Mãe Natureza, e irmãos e irmãs dos que habitam nesta Casa Comum. Mantenho viva, na memória, a este respeito, um denso depoimento prestado pelo Cacique Xicão Xukuru, pouco antes de seu assasinato em 1998, que vale ser conferido (cf. https://www.youtube.com/watch?
Na citada entrevista do Papa Francisco, chama a atenção o fato de se referir aos povos originários como portadores de excelência de dotes poéticos, por conta da harmonia que sustentam com a Mãe Natureza, razão pela qual se sente muito tocado pelo paradigma do “Buen Vivir”. Trata-se, por conseguinte, de lições a extrair de sua contribuição.
João Pessoa, 02 de agosto de 2022