A quem interessa a crucificação policial no Rio de Janeiro?

Foto: Jornal Extra/reprodução.
Foto: Jornal Extra/reprodução.

Em qualquer ditadura, um governo tem uma forma muito simples e tradicional de agir: os opositores devem ser calados. Se não por bem, que seja pela violência direta, encomendada a milícias ou realizada pelo próprio aparato estatal.

Há diferentes ditaduras pelo mundo, até hoje, mas todas elas – sem exceção – assim agem. Elas podem ser aplicadas pelo mais alto escalão do governo, nos piores casos, ou por grupos paramilitares atuando à margem da lei, porém sempre com apoio de oficiais de governo, com ou sem apoio de agentes privados e necessariamente com apoio de parte da população e da imprensa.

Esse modelo segue um padrão linear e é acompanhado, igualmente sem exceção, por um sem número de execuções sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais.

Por oposição, entendemos aqui apenas isso mesmo: o oposto, indesejável, que deve ser eliminado. Por qualquer que seja o motivo ou intenção.

A operação ocorrida no dia 16 de agosto de 2012 em uma favela em Santa Cruz, zona oeste do Rio de Janeiro, é tão normal que (infelizmente) é de fácil explicação. Cinco suspeitos foram perseguidos pela polícia civil, executados sumariamente e, no boletim de ocorrência, os assassinatos viraram “resistência à prisão”, uma mera consequência da troca de tiros. Um vídeo obtido pelo jornal EXTRA mostra claramente o contrário.

A chefe da Polícia Civil resumiu a posição sensata, porém (apenas) oficial do Estado: “O papel do policial é proteger vidas e agir dentro da lei. O princípio da Polícia Civil é prender e não matar”.

Para defender a população da Favela da Rola, os policiais precisavam executar sumária, arbitrária e extrajudicialmente os suspeitos à luz do dia? Não. Mesmo o mais limitado dos leitores de jornal há de concordar que, vivos, os cinco suspeitos servem muito mais para o combate ao crime do que mortos.

Além disso, atirar a partir de helicópteros em uma área densamente habitada não parece ser a atitude mais inteligente para a devida proteção da população. A singela prova disso é que a mesma polícia civil não chegou atirando para prender o bicheiro Anísio Abraão David. Os demais moradores do luxuoso apartamento de andar inteiro de frente para a praia de Copacabana talvez ficassem incomodados. Em uma hipótese, claro.

Os que são a favor das execuções sumárias são os que verdadeiramente estão “defendendo bandido”, ao meu ver, ao crer que o fim da violência só acabará com a morte de todas as pessoas do “Mal”, e não com a devida punição e efetiva investigação de suas causas. É isso o que faz o crime diminuir – e não apenas políticas sociais inclusivas, como pensam muitos liberais e socialistas.

As políticas inclusivas são, sim, importantíssimas e essenciais, mas sem a devida punição exemplar, dentro do Estado de Direito, não há um único país em todo o mundo que não tenha retomado índices alarmantes de insegurança pública e de execuções extrajudiciais. A certeza da impunidade mata muito mais que as armas de fogo.

O que vigora atualmente, no entanto, é resumido por um velho (e irônico) ditado que circula aqui no Rio: “Para acabar com a violência só com muita porrada”.

A violência maior, no entanto, está ocorrendo no dia a dia dos próprios agentes públicos do Rio de Janeiro. Sufocados pela política estadual irresponsável do confronto, muitos destes policiais entram numa espiral de vingança e de ódio contra o ‘outro’ que ocupa o mesmo lugar que ele: o oprimido pelo sistema de (re)produção da morte e do medo.

Isso fica evidenciado na fala de um policial da Core ouvido pelo jornal que estava na operação de agosto de 2012, ao comentar sobre o vazamento do vídeo: “Colocamos a vida em risco e acontece isso. Estamos sendo crucificados”.

Não há como discordar do agente. De fato, o que ele diz é ainda mais importante do que a da chefe da polícia civil, pois está no cotidiano da cidade. Os agentes colocam a vida em risco sob o mandato de suas chefias, que continuam a ignorar todo o aparato de inteligência que poderia ajudar o poder público a diminuir os índices de criminalidade – quando se tratam dos pobres. É um corte de classe, como sabemos. Computadores e Habeas corpus para uns, chumbo grosso e execuções para outros.

No lugar da “Inteligência”, o que fazem? Atiram sobre bairros superpopulosos da periferia, a qualquer momento, em uma caça insana a um punhado de garotos obedecendo a um sistema de varejo, cujos maiores beneficiários eles sequer conhecem e cuja estrutura nunca entenderão. (E quem quer receber balas de policiais nas suas cabeças a qualquer tempo? Alguém aí? Imaginei.)

Os policiais colocam sua vida em risco em nome do quê? De quem? Dos cidadãos de “bem”? Da luta contra o “mal”?

Se você é do tipo que considera que há seres humanos melhores que outros, parabéns – faz todo o sentido apoiar as execuções. Seres deste tipo – como os judeus na Alemanha nazista ou os negros da África do Sul durante o Apartheid – ficariam no mínimo ultrajados com este tipo de pensamento à mesa de jantar.

No entanto, se quisermos buscar uma compreensão mais equilibrada sobre como lideranças políticas oportunistas conseguiram obter apoio de seus agentes da lei para arriscar suas vidas diariamente sem questionarem quem são seus verdadeiros inimigos, vamos ter que nos esforçar um pouco mais.

Os policiais são os agentes públicos que mais se expõe ao crime. São eles que efetivam as operações da Secretaria de Segurança Pública. Se não começar por dentro da própria polícia o questionamento sobre a pertinência destes tipo de ações suicidas e assassinas, pouco mudará. Continuaremos ostentando números de homicídios maiores dos que o de uma guerra como a da Síria e, mesmo assim, reconduzindo para os mais altos cargos seus regentes.

A polícia que persegue pobres favelados e expõe numerosas pessoas a um tiroteio de classe, aquele que só atinge bairros da periferia, está colocando a vida de todos nós em risco – policiais ou não. A política do confronto poderia ser um atestado da nossa falta de inteligência para lidar com a questão, mas infelizmente é muito mais do que isso: é um projeto político muito bem estruturado. Reconhecê-lo é fundamental.

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