A (pseudo)verdade do Outro

dogma

É natural que cada um de nós tenda a achar estranhos ou “fora do lugar” pensamentos e concepções da realidade que não combinem perfeitamente com aquilo que consideramos correto. Afinal, ao longo dos anos, construímos nossa própria visão de mundo e, apesar de muitos de nós chegarmos a adquirir a capacidade de reavaliar constantemente nossos conceitos – considerando proposições que vêm do exterior de nosso confortável mapa cognitivo –, em algum nível, uma muralha de verdades pré-estabelecidas acaba se formando em nossas mentes.

A fixação de sentidos é, sem dúvida, importante para nossa sobrevivência; para o entendimento e compreensão mútua entre os indivíduos; enfim, para a organização das sociedades e do próprio saber. A linguagem – referência primeira no que concerne à produção e troca de sentidos – é baseada em lógicas específicas e se dá por meio de sinais, signos e sons particulares que designam situações e objetos concretos ou abstratos de maneira determinada. Trata-se de uma forma de possibilitar a comunicação dentro dos limites sensoriais dos seres humanos, isto é, até o ponto em que as faculdades físicas e mentais das pessoas lhes permitem apreender a realidade, seja por meio da visão, da fala ou da audição. Existe, portanto, uma limitação intrínseca à linguagem. Mas o fato é que, sem convenções mínimas quanto a significados e outras especificações, não haveria possibilidade alguma de organização e interação social.

A vida de seres gregários como nós depende, por conseguinte, de acordos, protocolos, convenções e – por que não – de “verdades”, que são o ponto de partida para as ações empreendidas pelas pessoas. E, para além de objetivos meramente funcionais, esse estabelecimento de sentidos acaba fundamentando os aspectos culturais, bem como da ética e moral, que tomamos para nós como referência e parâmetro de conduta.

Hegemonia

Isso posto, abordemos agora um problema fundamental que é decorrente desse necessário estabelecimento de verdades e pré-modulação cultural e ético-moral: a naturalização dos sentidos, isto é, a elevação de conceitos ao status de verdades absolutas, situadas para além do campo da linguagem e da cultura; detentoras de uma condição quase que metafísica.

Muitos desses princípios tidos como verdades inquestionáveis são consensualmente aceitos pelas pessoas. Esse fenômeno seria, inclusive, o fundamento básico da construção da hegemonia que, segundo Gramsci, ocorre a partir da “produção de uma verdade geral consensual”. E, embora a instrumentalização dessas “verdades” seja uma justificativa, em parte, aceitável para a formação desse consenso – pois, como foi dito, é preciso haver pontos em comum acordo para que as sociedades se organizem –, o que não pode ser tolerado, de forma alguma, é a instauração do totalitarismo cognitivo. Qual seja, a recorrência de uma ditadura do discurso hegemônico que controle os mecanismos de formação do consenso, deixando, velada, em paralelo, a origem social de verdades absolutas.

A fim de evitar que essa estratégia básica da vontade de poder (regular a produção de sentidos é lutar pelo poder) ofusque por completo a busca socialmente interessante pelo conhecimento, é preciso ter em mente que quaisquer verdades, por mais dogmáticas que sejam, são passíveis de questionamento. E, principalmente, que cada um de nós esteja sempre preparado para questionar suas próprias convicções. Além disso, é mister aceitarmos o olhar estrangeiro e a fala do Outro, por mais estranhos que nos pareçam (vale notar que “estranho” e “estrangeiro” partilham do mesmo radical, cuja etimologia remete à xenofobia ou aversão ao que vem de fora). E o que pode facilitar esse movimento é pensar que nossas concepções certamente parecem tão ou mais bizarras para o Outro, o qual tem o dever, da mesma maneira, de escutar o que temos a dizer.

Razão, paixão e relativismo

Para transpor as muralhas cujos pilares, muitas vezes, remontam aos sentidos aparentemente mais banais e lógicos possíveis, é imprescindível que se tenha humildade e que se saiba manejar a busca pelo real entre a razão e a paixão. Pois, pender em demasia para o lado da razão é abrir mão do olhar sensível e intuitivo, além de limitar-se à disciplina científica, à sua particular ordem discursiva; e cair totalmente nas rédeas da paixão ideológica pode cegar o mais bem-intencionado dos prospectores da verdade.

Essa discussão é também importante para que nós estejamos sempre cientes de que toda verdade detém certo grau de relatividade, pois é, a priori, produto de um determinado ponto de vista. Logicamente, o objetivo de tal asserção não é cair num relativismo que venha a inutilizar a função dos princípios que norteiam a vida social humana. Dois e dois, no campo da matemática, são quatro; a Terra, para os cientistas, é redonda e gira em torno do sol, fato que permite aos homens controlar suas colheitas de acordo com as estações do ano. No entanto, apenas atentemos para o fato de que “dois” é um substantivo que inventamos para nos referirmos a uma quantidade (sendo que só podemos quantificar numericamente certas coisas); redondo é um adjetivo que se refere a uma forma específica captada de maneira determinada pelo globo ocular e cérebro humanos e o percurso que a terra faz é medido por instrumentos e cálculos que não escapam aos signos lingüísticos concebidos pela humanidade.

Para um extraterrestre, tudo isso poderia ser visto de outra maneira. Difícil seria entendermos ou termos a capacidade físico-biológica e mental de compreender o paradigma segundo o qual essa outra visão seria empreendida. Mas isso seria, no mínimo, facilitado, caso nossos preconceitos não nos impedissem de, ao menos, procurar entender novos modelos de apreensão da realidade.

4 comentários sobre “A (pseudo)verdade do Outro”

  1. Pingback: Tweets that mention A (pseudo)verdade do Outro | Revista Consciência.Net: acesse a sua. -- Topsy.com

  2. Na falta de capacidade intelectual para escrever um comentário do mesmo nível do texto acima, vai o sentimento que me toma agora expressado grosseiramente: DO CARALHO!!!

Deixe uma resposta