A Extradição do Major Manuel Cordero

 

 

 

 

No dia 23/01/2009, o major reformado do exército uruguaio Manuel Cordero Piacentini (conhecido como “coronel”) foi extraditado para a Argentina, com base no compromisso do governo desse país de fornecer-lhe a assistência médica em função da qual sua defesa pedia a suspensão da extradição. Cordero está indiciado por crimes de lesa humanidade cometidos especialmente contra uruguaios exilados durante a ditadura argentina (1976-1983).

Alguns setores aproveitaram para comparar a extradição de Cordero com a de Battisti. Não é meu propósito polemizar sobre isso. Quando uma infâmia é transformada em objeto de polêmica, os polemistas conferem valor a algo que deve ser ignorado. Aliás, as mensagens de ódio contra Battisti estão diminuindo muito, porque as injúrias e infâmias, difundidas em forma de violenta cascata, acabam esgotando a modesta capacidade cognitiva de seus autores.

Entretanto, é necessário que os conceitos tortuosos que fundamentam esses discursos sejam esclarecidos, porque muitas pessoas de boa fé podem ter dificuldades para avaliar sua verdadeira toxicidade.

Poucos brasileiros, incluindo pessoas informadas, conhecem os detalhes do maior genocídio em países ocidentais desde maio de 1945: o do Cone Sul (1968-1982). Menos ainda são os que conhecem os bastidores do Operativo Condor, no qual Brasil envolveu-se parcialmente. Já saber quem foi Manuel Cordero é mais difícil ainda. É tal o numero de genocidas, torturadores e criminosos de lesa humanidade que forneceram os exércitos e as polícias da América do Sul, que mesmo os ativistas de Direitos Humanos temos dificuldade em identificar os de maior patente. Confesso que há pouco tempo que soube quem era o major Manuel Cordero.

Por outro lado, para muitas pessoas honestas e lúcidas pode ser complicado separar os chamados “crimespolíticos, dos crimes comuns, e dos crimes de lesa humanidade. As instituições que deveriam esclarecer o público, zelar por uma ordem legal e ministrar justiça (mídia, políticos, magistrados, etc.) têm contribuído a aumentar a já grande confusão. Nega-se a condição de crime político (que passa a ser rotulado como crime comum) quando o réu é um inimigo, ou alguém é “gratificado” para destruí-lo, como aconteceu no caso Battisti.

As corporações militares (com raríssimas exceções em alguns países ultrademocráticos) qualificam às vezes de crime político aos crimes contra humanidade, como racismo, genocídio, tortura, matança massiva de crianças, estupro serial, etc. Observem que disse “às vezes”. Digo isto, porque na maioria das vezes, eles não consideram estes atos crimes de nenhuma índole: eles os acham feitos heróicos, em defesa da fé, da raça, da nacionalidade, da tradição, e outros fetiches. É bem conhecido que os nazistas queriam evitar a multiplicação de certos grupos étnicos ou culturais, matando seus membros na infância. Seus equivalentes latino-americanos não ganharam a notoriedade dos nazistas, porque as grandes potências os protegeram.

Só um exemplo. Quando o genocida Alfredo Astiz, que comandava um navio durante a Guerra das Malvinas, foi capturado por Grã Bretanha, depois de ter-se rendido e esmolado misericórdia aos “inimigos”, o reino de Suécia o reclamou imediatamente. Ele estava indiciado nesse país pelo homicídio de uma adolescente escandinava. O governo britânico não o entregou, como era sua obrigação moral e material. O manteve como prisioneiro e o liberou depois do fim da Guerra.

A confusão entre extraditar um responsável de crime político e um autor de crime comum ou de crime contra a humanidade é incrementada pelos grupos dominantes. Quando o ditador Stroesnner recebeu asilo no Brasil, num dos muitos atos repulsivos do governo Sarney, alguns argumentaram que ele era um governante e, portanto, um político. Logo, seus crimes eram políticos!

A idéia de crime político, do qual quase todos têm certa intuição, nunca foi corretamente formulado, inclusive pelos organismos internacionais. Obviamente, não pretendo resolver o problema em algumas páginas, mas quero pelo menos dar algumas sugestões iniciais.

Crime em Geral e Crime Comum

A palavra “crime” tem uma carga emocional e moral muito forte. Induz a pensar em homicídio, assaltos, grandes fraudes. Entretanto, um crime é uma forma de delito (ou seja, da violação de uma lei) que, por causa de seus efeitos, é castigado pelo poder público com perda da liberdade ou da vida. Os outros delitos (como violação a lei de trânsito) são considerados infrações.

Sendo o crime também um delito, ele constitui na violação de uma lei, ou seja, de uma convenção aprovada por um corpo legislativo. Desde as origens da sociedade organizada, essas convenções (leis) visavam proteger as classes privilegiadas e favorecer a exploração dos setores pobres. Para que tivessem maior força, os crimes foram considerados pecados, ou seja, transgressões a “leis” religiosas.

Portanto, nem todo crime viola uma lei natural. Falando por alto, leis naturais são as que os seres humanos usufruem por causa de sua condição biológica, física e social, e cuja privação os degrada. Em outras palavras, leis naturais são as que respeitam os Direitos Humanos básicos: o direito à vida, à liberdade, à subsistência, à dignidade, à opinião, à educação, etc. As leis que protegem o direito natural foram adotadas, lentamente, na medida em que a humanidade se tornou mais igualitária, menos teocrática e menos militarizada. Ou seja, essas leis não existiam antes da Revolução Francesa, e ainda são minoria na quase totalidade dos paises. O direito de um fazendeiro de prender um camponês que rouba de seu feudo para combater o frio (um dos primeiros problemas sociais concretos que tratou Marx na Gazeta do Reno), não é um direito natural: aliás, é um direito contra a natureza.

Os crimes comuns são aqueles que seus autores cometem para obter alguma vantagem para si ou para seu grupo de pertinência. Assalto, roubo, e venda de drogas são típicos crimes (ou delitos) comuns: o autor procura o lucro. Mas também atos violentos sem sentido podem ser crimes comuns: por exemplo, um homem ciumento que bate em sua mulher por ter mantido relações sexuais com outro cara, também tira proveito de seu crime. Não obtém lucro, mas satisfaz necessidades doentias de posse, exclusividade, autoridade, etc.

A introdução do humanitarismo no direito começou a diferenciar entre delitos que supõem uma misteriosa “vontade criminosa” do autor (como aquele que decide assaltar um banco para ficar rico) da necessidade de algumas pessoas que cometem delitos para manter sua subsistência e a das pessoas próximas. Por exemplo, um cidadão com um filho doente pode roubar antibióticos, porque em sua escala moral, a saúde e vida de seu filho estão acima do lucro que do dono da farmácia. Esta não é a escala dos empresários e, na maioria dos casos, tampouco a dos julgadores e políticos.

O Brasil decidiu inventar uma categoria especial de crime comum, o crime hediondo, um conceito difuso que parece equivaler, na mente dos legisladores, a um crime horrível, como assassinato cruel, seqüestro, estupro, tortura, etc. Na verdade, esse neologismo não foi muito feliz. Em 2003, alguns membros do governo se preocupavam porque alguns juízes qualificavam como crime hediondo a falsificação de cosméticos!

Estes absurdos podem ter sido casuais, mas, no caso Battisti, serviu para que o relator aplicasse esse conceito, aproveitando que os legisladores que redigiram a lei 9474 incluíram os esotéricos “crimes hediondos” entre os proibitivos de refúgio. A ministra Carmen Lúcia observou que esse conceito não existia nem no próprio Brasil, quando se cometerem os crimes carregados a Battisti, mas o relator nem escutou.

Crimes Políticos

O crime político não é o mesmo que crime cometido por um político, nem crime com intenção política, como confusamente definem certas leis e constituições. Se assim fosse, os nazistas condenados em Nuremberg deveriam ter sido absolvidos em sua totalidade. (De fato, pode questionar-se a forma de punição, mas apenas os pró-nazistas ousam dizer que aqueles sujeitos eram apenas autores de delitos políticos).

Observe, primeiro, que “crime” político é um ato que os grupos dominantes possuem, qualificam de crime. Assim, fala-se em alguns países de “crime de opinião” ou “crime de ideologia”. De fato, não podem existir verdadeiros crimes de ideologia, porque quando há uma lei que proíbe pensar ou expressar-se, essa lei é iníqua, e sua eliminação é louvável.

Portanto, o que se pode considerar crime político é a violação de leis que, em si mesmas, não são totalmente iníquas, mas podem ser violadas quando existe um objetivo que, de acordo com certos parâmetros (como a resistência à opressão) pode ser entendido como “mais valioso que o respeito à lei”.

Por exemplo, a lei que proíbe roubar bancos, não é iníqua. Entretanto, durante a Segunda Guerra, milhares de resistentes de diversos países (Noruega, Dinamarca, Holanda, Polônia, a França de Vichy, e outros) atacaram bancos para enfraquecer o poder financeiro do invasor nazista.

A intuição sobre “crime político” é bastante forte na maioria dos casos, mas carecemos de uma especificação formal adequada. Minha opinião é que, para poder ser chamado “crime político” e ser, portanto, invulnerável à extradição e meritório de asilo, ele deve reunir algumas condições:

  1. Deve consistir numa ação exercida por cidadãos ou grupos contra um governo, sistema o estrutura de estado que é considerada pelos atores como opressiva, ilegítima, desumana, etc.

Pode estar dirigida também contra estruturas privadas de repressão e possuem um poder paralelo ao estado, como empresas de segurança, jagunços, gangues de fazendeiros e empresários, esquadrões da morte, etc.

  1. Deve possuir um esquema ético-ideológico que permita definir seus objetivos em função dessa luta contra a opressão.
  2. Não pode desenvolver uma violência maior que a estritamente necessária para proteger a seus militantes ou avançar na ocupação de objetivos, mas não deve atingir inimigos que estejam neutralizados.

Por exemplo, em alguns países, grupos considerados de esquerda executaram pessoas que já estavam rendidas, como no caso do partido Naxalite, na Índia. Esses crimes não são políticos; de acordo com sua índole, podem ser comuns ou contra a humanidade. Já a execução de alguns torturadores pelo MIR em 1974 no Chile, foi um crime político em estrita defesa. Nenhum grupo resistente tinha infra-estrutura para impedir a continuação da tortura, sem executar os torturadores.

(Há uma polêmica entre as organizações de DH sobre este tipo de crimes, mas existe consenso em que morte de genocidas e torturadores, quando não podem ser detidos por outros meios, é crime político. Anistia Internacional considera que estes crimes não transformam seus autores em “prisioneiros de consciência”, porque o uso da violência vai além da consciência e da ideologia, mas reconheceu em números casos como “prisioneiros políticos” a pessoas que usaram violência defensiva.)

  1. No desenvolvimento de uma luta contra a opressão, os oprimidos não podem transgredir leis do direito natural. (1) Mortes desnecessárias, que não sejam em legítima defesa, direita ou não. Por exemplo, as execuções atribuídas a “justiça revolucionária” são mortes desnecessárias e constituem crimes comuns. (2) Aplicação de tortura, em qualquer caso. (3) Humilhação ou desrespeito com os prisioneiros dos resistentes. (4) Negativa de atender as necessidades dos prisioneiros, na mesma medida em que são atendidas às necessidades dos resistentes: alimentação, saúde, proteção do clima, lugar onde dormir, ocupação e lazer, quando seja possível.
  2. Os grupos resistentes devem se auto-dissolver logo que obtidos seus objetivos. Não devem eternizar-se como forças militares, e devem entender seu uso da violência como necessidade transitória. Alguns grupos de resistentes, como o setor original dos Montoneros, na Argentina  adotaram as hierarquias e os fetiches da alienação militarista, e alguns de seus atos não podem ser considerados crimes políticos. Em particular, a vocação pela morte típica das corporações armadas deveria privar aos grupos resistentes dos benefícios dados aos autores de crimes políticos.

Crime de Estado e Crime de Lesa Humanidade

Então, brevemente: um crime político deve ser de resistência contra a opressão, exclusivamente defensivo ou organizativo, contrário a qualquer forma de tratamento cruel, e inimigo de qualquer forma de militarismo.

É uma falsidade grosseiramente espalhada pela direita (muito comum no Brasil, quando Tarso Genro concedeu refúgio a Battisti) que a esquerda considera crimes políticos só aos que são cometidos por seus membros.

Os opositores de um sistema opressivo são quase sempre de esquerda, mas também há resistente de direita: aqueles cuja ideologia qualifica como opressivo o regime que combatem, mesmo que na realidade não o seja.

Neste sentido, Cuba é um cenário de vários casos.

Os opositores que tentam derrubar o governo da Ilha para estabelecer uma democracia tradicional aliada aos Estados Unidos são de direita. Os desertores do exército cometem, sem dúvida, delitos políticos e merecem a mesma proteção que os que fogem de regimes conservadores.

Os opositores que exigem ao governo a instalação de um governo verdadeiramente socialista com uma democracia popular, como estava nos projetos de Che Guevara, são de esquerda. Há muito cubanos de esquerdas exilados, porém na Suécia e não em Miami.

Já os terroristas, como Posada Carriles, Fernando de Montejo, o grupo Alfa 66, e pessoas ou organizações que produziram várias catástrofes humanitárias (explosão de hotéis e aviões, assassinatos em massa) são terroristas, e seus crimes são crimes contra a humanidade.

Por sinal, o ministro Tarso Genro afirmou que daria refúgio a um fugitivo fascista cuja extradição era pedida por Itália, desde que não tivesse cometido crimes contra a humanidade. Ele rejeitou o refúgio e o governo italiano parece não continuar insistindo, o que faz supor que aquele pedido de extorsão foi uma mascarada para dissimular a animosidade contra Battisti. Mas, em realidade, o ministro ofereceu refúgio a um fascista.

Outro exemplo é o de Anistia Internacional. Durante os Anos de Chumbo, o governo italiano prendeu e submeteu a tortura a dúzias de militantes de esquerda. Para manter aparência de objetividade, também prendeu alguns fascistas que depois foram liberados. Nossa organização pediu a liberdade de um desses fascistas que eram mantido preso durante anos, por desentendimentos entre as facões fascistas que apoiavam o governo.

Mas, que são, então, os crimes contra a humanidade?

São crimes que atendem, pelo menos, as seguintes condições:

  1. São cometidos pelo poder estabelecido. Por isso, são um caso particular de crimes de Estado. Ou então, seus autores são grupos paralelos de poder: ligas de empresários, traficantes de armas, latifundiários e ruralistas, bandas organizadas de para-policiais e para-militares. No exemplo de Cuba, o grupo Alfa 66, e outros grupos terroristas de grande impacto, são sustentados (embora não façam parte dele) pelo governo dos Estados Unidos.
  2. Quando exercidos por um estado, seu objetivo é a dominação política, e a aniquilação dos opositores (o termo “aniquilação” foi oficialmente usado pelo governo da viúva de Perón, na Argentina, em 1974, e aceito pelos demais partidos). Quando exercidos por um grupo terrorista paralelo, procuram aniquilar a estrutura de um estado considerado inimigo. Por exemplo, o golpe de estado de 2002 na Venezuela, promovido por grandes corporações econômicas ajudadas por Espanha e pelos Estados Unidos.
  3. Seus métodos consideram as vidas humanas como objetos descartáveis, sem que importe a pessoa específica e seu grau de envolvimento nos fatos. Esses métodos podem ser democídios (crimes massivos de pessoas que “incomodam”, sejam ou não inimigos), etnocídios (homicídios massivos de etnias), chacinas terroristas, onde as vítimas podem ser quaisquer, desde que exteriores ao grupo que as pratica, etc.

Nesse caso, o objetivo é apenas demonstrar poder e infundir terror, como fazem a maioria dos exércitos com a população civil de países em guerra. Na prática, quase todo corpo militar comete crimes de lesa humanidade. O fato de que os nazistas sejam considerados criminosos especiais contra a humanidade, se deve ao planejamento minucioso de seus crimes, o alto impacto quantitativo e o fato de que fossem aplicados sobre a população branca da Europa. Crimes similares e piores foram cometidos contra índios e negros até hoje, sem que houvesse nenhum tipo de punição. Esse é o principal motivo que torna os militares de mais de 120 países em inimigos totais dos DH, pois estes direitos proíbem a matança de civis, o terror bélico.

  1. Aplicação de formas cruéis e desumanas de tratamento, com o objetivo de mostrar poder, satisfazer necessidade dos executores (que são, em sua maioria, personagens altamente psicopáticos) e infundir terror. Tortura é um típico crime contra humanidade, porque não visa um objetivo libertador, nem mesmo o lucro pessoal, mas satisfazer o ódio contra parte da espécie humana.

É importante ter em conta que nenhum crime comum pode ter o efeito destrutivo de um crime contra a humanidade, mesmo de mediano impacto. Por exemplo, uma enorme gangue que assalte bancos dificilmente poderá matar, ao longo de toda sua vida criminosa, mais de 100 pessoas. Um pequeno exército pode fazer vários milhares de vítimas em poucas horas, apenas para produzir terror.

A comissão de crimes contra a humanidade está influenciada pelo sistema político ao qual aderem os autores. Mas, essa influência não é estrita. Países com democracias antigas e estáveis, como os Estados Unidos, cometeram crimes de lesa humanidade em altíssimo grau na Coréia (1950-1953), Vietnam (1964-1975) e em outros lugares, fantasiados do que os militares chamam “dano colateral”. Aliás, o próprio partido nazista ganhou o poder por eleições, embora logo em seguida se transformasse em ditatorial.

Agora já sabemos a diferença entre as duas extradições. Cordero é um autor de crimes contra a humanidade. Envidou esforços para eliminar exilados uruguaios morando na Argentina, o que incluía algumas dúzias de seqüestros com desaparições definitivas, alguns homicídios explícitos, centenas de sessões de torturas e vários estupros.

Battisti é autor de delitos políticos, chamados “crimes” pelo aparelho repressivo brasileiro-italiano. Talvez essas ações não fossem as mais adequadas para o objetivo libertador da esquerda italiana da época. Entretanto, os esquerdistas, esmagados entre o fascismo ressuscitado, por um lado, e pelo neo-stalinismo, pelo outro, encontraram nesses grupos violentos o único nicho de atuação.

IMAGENS FUSIONADAS DE CENAS DA DITADURA ARGENTINA. Acima, esquerda, a troica de criminosos maior conhecida pelo mundo desde 1945. À direita, um soldado matando um civil indefeso. Abaixo, as Mães de Praça de Maio, Principais resistentes

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