A eficácia da ação profética como antídoto à mentira institucionalizada

Multiplicam-se, nos quatro cantos do mundo, os sinais de barbárie, ou mais precisamente, da barbárie capitalista, em seus estertores. A besta apocalíptica volta a atacar, em todo o mundo. Também no Brasil. Uma onda de extremismo protagonizado pela extrema direita varre parte considerável do mundo atual: nos Estados Unidos, na Itália, na Hungria, na Inglaterra… e no Brasil! Aqui tem lugar uma síndrome rara de maldades, concentradas num só grupo/pessoa. O país, por força de um processo eleitoral de legitimidade questionada, repleto de “fakes news” resultou numa pavorosa coincidência: em um mesmo grupo/pessoa de gestores, vem incidindo uma confluência de predicados perversos: rara estupidez, compulsão à mentira, ecocídio, misoginia, homofobia, racismo, beligerância gratuita,… Reinstala-se, no Brasil, o velho e pavoroso FEBEAPÁ: Festival de besteiras que assolam o país… Um fenômeno surrealista de alto poder deletério. Ações de resistência se tornam urgentes como nunca antes. Um resistência criativa há de comportar, por certo, o exercício da profecia, a atuação de forças comprometidas com um novo modo de produção, organicamente articulado a um novo modo de consumo e a um novo modo de gestão societal. 

Em âmbito nacional e mundial, vêm multiplicando-se os sinais de barbárie: deliberadas políticas de agressão socioambiental; crescimento dos índices de desigualdade social; aumento inaudito dos índices de feminicídio; de crimes homofóbicos; implementação de políticas ditatoriais

Em sua fase mais perversa, o Capitalismo refina seus instrumentos necrófilos, dentre os quais a institucionalização da mentira, tratada ora como pós-verdade, ora como “fake news” ou termos similares. Como a mentira não tem a última palavra no processo de humanização, cedo ou tarde acaba descosturada, desmascarada pela ação profética (adjetivo este aqui assumido para além de uma categoria meramente teológica). Em contextos passados da história, algo semelhante se produziu, ainda que em intensidade bem menor. Nas últimas décadas, contudo, o Capitalismo tem priorizado cada vez mais a institucionalização da mentira como estratégia de sobrevivência. Mas, tal recurso também tem limites. As linhas que seguem têm como propósito trazer a lume a eficácia da ação profética como instrumento demolidor de máscaras, de que se tem servido abusivamente a ideologia capitalista, nas diferentes esferas da realidade. Começamos por destacar alguns cenários, a título de ilustração exemplificativa de como o modelo hegemônico usa e abusa das mais torpes ferramentas da mentira, com o fim de manter sua hegemonia, mundo a fora. Em seguida, cuidamos de situar brevemente a força demolidora da ação profética ante as diversas formas de mentira, inclusive sob a estratégia de sua institucionalização. Por último, centramos atenção em mostrar como a ação profética, em nossos dias, pode (e deve) ter um lugar mais destacado, desde que protagonizada pelas forças sociais historicamente vocacionadas a superar o atual modo de produção (articuladamente ao modo de consumo e ao modo de gestão societal).

O Capitalismo se nutre da mentira e da ocultação de seus instrumentos de sustentação.

A despeito de todas as suas astúcias de aparência, o Capitalismo não sobrevive sem máscaras e falsas justificativas. Esta tem sido a moldura que o envolve, nas mais distintas esferas da realidade em que atua. Sucede que tem sido justamente em sua fase última, em seus estertores, que ele vem apelando para um recurso extremo: a crescente sofisticação da mentira, agora sob a forma de “pós-verdade” e de “fake news”, das quais tem usado e abusado, em diversas partes do mundo onde prevalece.

Para tanto, recorre ao que há de mais avançado nas ferramentas tecnológicas, em especial o uso e abuso dos algoritmos, através dos quais consegue multiplicar exponencialmente o poder de divulgação de mensagens sabidamente falsas, de factoides disparados em massa, de modo a fabricar notícias mentirosas, servindo-se inclusive de dados relativos ao perfil dos destinatários. Prática que evoca as artimanhas usadas pelo conhecido ideólogo nazista, Goebbels, para quem uma mentira repetida mil vezes acabaria ganhando ares de verdade. Assim aconteceu em várias partes do mundo; assim se deu nos Estados Unidos, durante a campanha eleitoral que culminou na eleição de Trump; assim desdeu no Brasil, por ocasião da campanha eleitoral de Bolsonaro. Não são casuais as afinidades múltiplas do desgoverno Bolsonaro com o desgoverno Trump.

E não se trata de pessoas isoladas – Trump, Bolsonaro e seus auxiliares -, mas especialmente de forças poderosas que se põem por trás deles, até porque são pessoas reconhecidamente estúpidas, sem qualquer capacidade de formulação, mas de exímios cumpridores de “scripts” elaborados pelas forças que representam: as grandes transnacionais atuando nas mais distintas áreas econômicas, inclusive na indústria de armamentos de guerra, na indústria de petróleo, das poderosas indústrias de mineração, do agronegócio, etc, sem esquecer de sua forte atuação também no campo da cultura, da educação e até das religiões (haja vista, por exemplo, o poder da Bancada dita “evangélica”, com sua teologia da prosperidade…). A atuação destas forças não se restringe as manipulações do Mercado capitalista, mas se estende pelos aparelhos de Estado.

As transnacionais, as grandes empreiteiras, as grandes empresas de mineração e do agronegócio, e sobretudo, do mundo financista, todas sabem o quanto lucram por meio da divulgação das “fake news” e da mentira institucionalizada. Basta conferir as taxas de escandalosa lucratividade auferidas pelos principais bancos atuando no Brasil… Na pior das crises vividas pelo povo mais pobre, o mundo financista arranca sucessivos superávits, com taxas de lucro acima dos 20%…

O que aqui vem entendido por profetismo?

Mesmo tendo consciência da diversidade conceitual concernente ao termo “Profecia” ou “Profeta”, importa explicitar o significado que lhe atribuímos, nas linhas que seguem. Em primeiro lugar, sublinhamos que, a despeito de a abordagem hegemônica comportar uma predominância teológica, buscamos tratar “Profecia”, “Profetismo” ou “Profeta”!, para além de sua semântica estritamente teológica, situando-os também como conceitos interdisciplinares. Desde sua etimologia, “Profeta” – de “phemi”=falar e “pro” = diante de, em lugar de – significa aquele que fala em nome de uma divindade, ou seu porta-voz, ou ainda o mensageiro ou intérprete de uma divindade. Prática registrada em âmbito do mundo antigo, inclusive no antigo Oriente Médio (Egito, Síria, Iraque, a região do médio Eufrates, a região Babilônica.) Neste caso, o profeta comporta uma dimensão antes política que religiosa, no sentido de não ser alguém ligado a uma prática religiosa, ligada ao culto, mas principalmente um intérprete que cuida de externar ao rei os sinais que distingue, cumprindo um papel de pessoa encarrega de oferecer ao rei um conselho sobretudo de animação, de apoio. Sentido diferente recebe o profeta bíblico.

Vale a pena, a este respeito, ouvir/ver a conferência da Profa. Dra. Elena Di Pede, no link: https://www.youtube.com/watch?v=N61fyJ1GSZg

Não se trata, portanto, de um fenômeno apenas bíblico. O próprio profetismo bíblico comporta semelhanças e diferenças com o exercido em outros povos. Quanto à semelhança, por ex. os profetas egípcios intervinham por meio de oráculo, como porta-vozes de uma divindade. Mas, há também diferenças consideráveis:

– enquanto os profetas do Oriente Médio antigo exerci ciam seu ofício junto ao rei e ao povo, com um propósito de apoio à política mantida pelo rei, em tempos de crise, e não tinham vínculo com o culto, os profetas bíblicos, por sua vez, agiam como mensageiros e intérpretes de Adonai, o Senhor, transmitindo suas mensagens ao rei e ao povo, no mais das vezes, para apresentar denúncias tanto contra a ordem política quanto em relação aos desvios do culto, isto é: agiam tanto no plano político quanto no plano religioso.

A profecia se praticava tanto no terreno pessoal como no âmbito coletivo.

Os profetas eram advertidos para comunicarem, não sua posição, mas a de quem os enviava a profetizar. Eram sempre recriminados, se fossem infiéis à fonte da mensagem.

As denúncias que os profetas são enviados a fazer, não têm por objetivo a condenação, mas a conversão (do povo ou do rei) de seus malfeitos. O anúncio desponta como o alvo maior.

A profecia não está vinculada necessariamente a um a instituição. Deus chama a quem ele quer, onde, quando e como quer.

A interpretação da profecia requer um contínuo exercício de discernimento da parte de quem os escuta, pois não há garantia absoluta de acerto de que aquela palavra vem mesmo de Deus, ou se pode ser objeto de eventual manipulação de quem a comunica e de quem a escuta.

A missão do profeta é advertir dos riscos e das consequências dos malfeitos, em especial por parte de reis ou lideranças religiosas que abusam do seu poder.

Diferentemente dos profetas do antigo Oriente Médio, tidos como “profissionais” e ligados aos interesses do rei, os profetas bíblicos (por exemplo: Moisés, Josué, Samuel, Natan, Isaías, Jeremias, Amós…) eram enviados por Adonai, para denunciarem os maus feitos, e anunciarem a libertação dos oprimidos. Eles recebiam tarefas específicas.

Uma delas é a de despertarem a memória histórica de seus contemporâneos, incentivando-os a rememorarem testemunhos e práticas (pessoais e coletivas) do passado menos recente e mais recente, transmitidos por figuras históricas respeitáveis, cujo legado a todos convida a uma revisitação, com o propósito menos de “matar” saudade, e mais de reavivar compromissos, de rever metas e caminhos inconsequentes. Isto significa não uma rendição ao passado, mas um convite a uma atitude coerente entre passado-presente-futuro, razão por que é somente pela práxis assumida no presente, que se revela o verdadeiro sentido de tal revisitação do passado. Em semelhantes exercícios, tem-se mostrado fecunda a contribuição de bons clássicos, a exemplo de Ernst Bloch, por meio de seu “Princípio Esperança”, a clamar pela renovação de compromissos com a causa libertadora, acenando para o “Já” e o “Ainda não”., isto é: o horizonte almejado há de ser sinalizado já no presente, graças ao testemunho que se pode e que se deve oferecer, pessoal e coletivamente, com a consciência de que o que se obtém no presente “ainda não” corresponde em plenitude ao que se deseja.

Outra dimensão relevante do exercício da profecia tem a ver, ao mesmo tempo, com a crítica e a autocrítica. De um lado o profeta – homem ou mulher – não hesita em denunciar os malfeitos da sociedade, começando a fazê-lo pelas autoridades e pelos segmentos privilegiados da sociedade, o que lhes custa muito caro, por vezes a própria vida; por outro lado, tem a coragem de, ao dirigir  suas críticas, a quem quer que seja – também aos setores populares -, cuida de também colocar-se, por primeiro, sob a linha de tiro, isto é, examina sua própria consciência, inclusive acerca da denúncia que dirige aos outros. Aí repousa sua credibilidade perante os destinatários e os diversos segmentos da sociedade, esta faceta ressurge de uma atualidade a toda prova.

Também ao interno das Igrejas cristãs, inclusive da Igreja Católica, vimos assistindo a uma sucessão de atentados  ao direito e à justiça, ao ponto de se ouvir até de autoridades, de bispos, declarações de que não apreciam um perfil profético, nas ações eclesiais, preferindo as ações de assistencialismo…

Seja como for, a ação profética segue sendo um componente essencial das lutas, nos mais diversos setores da sociedade e também ao interno da(s) Igrejas.

Que tipo de ação profética se apresenta mais fecunda, em nossos dias?

Nos impasses da atualidade, em que contrastam fortemente, por um lado, as ações de barbárie e, por outro, a escassez de profecia, resulta útil perguntar- nos: que tipo de ação profética se perfila mais urgente, aos nossos dias? De modo despretensioso, ousamos pôr-nos em busca de elementos de resposta.  Sem ignorar nem subestimar a relevância de uma ação profética exercitada por pessoas, entendemos que ainda mais fecunda seria articular uma profecia exercida por pessoas – mulheres e homens – a um outro tipo de ação profética protagonizada por sujeitos coletivos. Tal consideração nos remete a um conhecido episódio bíblico, em que pessoas próximas a Moisés o procuraram para se queixarem de haverem encontrado pessoas fora do grupo a profetizarem. A resposta de Moisés lhes soaria desconcertante: “Tens tu ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta, e que o Senhor pusesse o seu espírito sobre ele!” (Números 11:29b).

Em décadas recentes, ao interno do que se tem denominado “Igreja na Base”, especialmente em circunstâncias de marchas, procissões e romaria, costumava-se entoar um canto, uma de cujas estrofes assim dizia: “No deserto, antigamente / O povo de Deus marchou/ Moisés andava na frente/ Hoje, Moisés é a gente/ Quando enfrenta o opressor”.

Sendo a ação profética um chamamento, ao mesmo tempo, pessoal e coletivo, sua expressão comunitária parece lhe conferir mais força e eficácia, sobretudo

Especialmente em contextos de barbárie, a ação profética se revela mais eficaz, quando assumida coletivamente, ainda que sem prejuízo da incidência pessoal, como sinalizada pelo profeta Joel. Ação potencializada quando assumida comunitariamente. A propósito deste tema, tivemos hoje, na reunião semanal do Grupo Kairós, mais um tópico do livro “O Caminho”, de autoria do Pe. José Comblin. Tomamos a liberdade de citar um trecho, em que ele ressalta a força da ação profética, quando exercida pela/na comunidade:

“Outra dificuldade é a de achar lideranças, pessoas estejam dispostas a formar, assumir responsabilidades coletiva, dirigir, manter unidas as comunidades. Todos sabem como é difícil achar tais pessoas nos assentamentos, nos bairros, nas favelas. Muitos têm na mente o modelo de liderança criado pelos políticos. O “Chefão” tem os seus cabos eleitorais, os seus capangas, que lhe são devotamente dedicados – porque ele lhes oferece, além da proteção de um homem forte, uma certa socialização. É a prática do clientelismo. Há tendência muito forte para formar caciques – no mau sentido da palavra -, e não dirigentes de comunidades, pessoas que buscam na sua clientela uma força política, uma vantagem pessoal e não o bem e a unidade de todos.

Quando aparecem lideranças verdadeiras, é preciso multiplicar as ações de graças, porque são pérolas preciosas. A estrutura da Igreja católica não favorece o surgimento de tais lideranças. O sacerdote, pela sua posição social, pelo monopólio de todos os poderes, impede a existência dessas lideranças – e o aparecimento de pessoas que possam assumir responsabilidades. O padre busca auxiliares para aplicar os planos e as decisões tomadas por ele. Por isso as comunidades eclesiais de base prosperam, sobretudo lá onde não havia sacerdote ou onde ele somente aparecia de vez em quando.”

(Comblin, J. O Caminho: ensaio sobre o seguimento de Jesus São Paulo: Paulus, 2004, p. 201-202)

Também forte se revela a ação profética, quando exercitada pelas forças sociais historicamente vocacionadas a protagonizar mudanças substantivas, em vista de uma sociedade alternativa ao modelo hegemônico atual. Mas, de que ação profética se trata?

Trata-se de uma ação inserida no cotidiano organizativo, formativo e de lutas dessas forças sociais. Trata-se de uma ação profética que trabalhe bem a memória histórica dos oprimidos, de modo a extrair lições das lutas sociais do passado recente e menos recente, sem a pretensão de reeditar as mesmas lutas, mas de recolher inspiração para o enfrentamento dos desafios presentes.

Trata-se de uma ação profética que induza os sujeitos – mulheres e homens – dessas organizações de base a um constante aprimoramento dos sentidos (do ver, do ouvir, do sentir…), de modo a agudizar sua percepção dos sinais dos tempos, interpretá-los e levá-los a sério, em seu dia-a-dia. Trata-se de uma ação profética capaz de comprometer seus agentes a exercitar uma crítica consistente sobre o atual modelo societal, que seja precedida da autocrítica: inócua é a crítica que não parta da autocrítica – acaba levando ao descrédito dos que denunciam, sem anunciar pelo seu testemunho.

Eis apenas algumas pistas que podem ser úteis a nossas organizações de base, como forma de resistência propositiva face aos gigantescos desafios que enfrentamos, nesses tempos de barbárie e obscurantismo.

João Pessoa, 25 de julho de 2019

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