A cidadela sociológica

freireAlgum tempo atrás, um “panfleto” intitulado como está escrito acima (1), despertara simpatías entre jovens estudantes de sociología, insatisfeitos com o massacre sensorial perpetrado nas instituições de ensino superior em nome da Ciência. Em meio a músicas dos Beatles e Rolling Stones, Raúl Seixas e Renato Russo, nascia a sociología não séria. Uma sociología capaz de falar para qualquer um, uma sociología dialógica, aberta para o misterioso. Uma sociología que fala muitas línguas, como você, como cada um de nós.
O tempo mostrou, entretanto, que era necessário transformar a bomba em trabalho. Um dos maiores obstáculos revelou-se a dificuldade de muitos alunos, de “funcionarem” criativamente em sala de aula em liberdade, com responsabilidade. A cobrança de um papel autoritário, tão insistentemente praticado na Cidadela Sociológica, da parte de numerosos alunos, forçava a constantes adequações de rítmos na caminhada pedagógica, permanentes reelaborações de linguagem, para que o jocoso não derivasse para o barroso, barrento, ou como quer que se diga. Aluno acostumado a calar a boca (cale-se), querendo calar a boca dos demais (professor, colegas “menos … alguma coisa, menos objetivos, menos coerentes, menos”).
Só não arrisca quem já morreu. As regras eram necessárias, sim, claro que em moldes mutantes.
Obviamente, sem uma limpeza de terreno, seria impossível qualquer construção, qualquer reconstrução a partir dos materiais recuperados.
O caminho que percorremos para começar a colocação dos alicerces, foi a publicação de Max Weber ciência e valores, pela Editora Cortez (São Paulo), em 1996. Entretanto, a linguagem tornara-se demasiado distante do cotidiano, demasiado presa à monofonia acadêmica.
Assim nascem estas Lições de Sociología, as páginas da Sociología não seria. Um exercício de multilíngua. Um antídoto contra o tédio neoliberal. Um jogo que só se completa com você. Um panfleto interminável. Uma brincadeira na beira do abismo. Um divertir-se com a destruição que possibilita o renascimento. Uma tentativa de cumprir a promessa sociológica que Wright Mills enunciara em A imaginação sociológica. A promessa que Marx enunciara nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. A promessa que Weber enunciara em A ciência como vocação.
A promessa que Betinho, Paulo Freire, encarnam, encarnarão. Porque é necessário lembrar, nestes esquecediços tempos neoliberais e internéticos. Lembrar do passado para não repetí-lo. A única forma de ser revolucionário nestes tempos, é ser autêntica e profundamente conservador. Valorizar o inútil, o desprezível, o que não se pode vender. Aquilo que não morre.
O caminho que escolhemos para transformar a crítica em ação, foi a transcrição dos exercícios que, na prática da sala de aula, evidenciaram um efeito transformador na percepção, nos modos de agir, sentir e pensar e, sobretudo, nas formas de expressão e relacionamento.
É impossível esquecer a emoção de ver surgir por baixo da tinta velha, a cor da madeira. A raspagem da pintura alheia que encobre os próprios rostos, que sufoca as próprias linguagens. A remoção de hábitos alheios que oprimem as próprias maneiras de viver. A contestação efetiva (consciência e ação) da barbárie deshumanizante do capitalismo e seu Deus Supremo, a Propriedade Privada, a Lógica da Posse exclusiva e excludente.
Toda revolução começa na educação. Toda dominação persiste enquanto a educação estiver ao seu serviço. É óbvio que a educação não massacra somente nas salas de aula, mas alí ocorre um momento importante na robotização do indivíduo. Alí legitimam-se modos de pensar, sentir e agir aprendidos em casa, na rua, no trabalho. Recebem sua sanção moral. Hoje uma sanção laica, não religiosa. Uma sanção científica, institucional, oficial.
Assim, tornou-se inevitável a tarefa de transcrever os exercícios de sociología praticados ao longo de vários anos de atividade docente e investigativa, tanto dentro como fora da universidade, tanto em sala de aula como em congressos, tanto em artigos quanto em conversas informais com alunos de distintas classes sociais e orientações profissionais.
Hoje em día é muito mais necessária a sociología para os não aprendizes de cientista social. Para os que não terão a oportunidade de pisar numa sala de aula. Para os que não poderão comprar livros de alguém que depois peça para ser esquecido. A sociologia hoje deve chegar aos trabalhadores, às donas de casa, aos estudantes das carreiras técnicas, aos leitores de jornal, aos navegantes da Internet, aos passageiros dos ônibus urbanos.

(1) “The sociological citadel”, Comunicação apresentada ao XII Congresso Mundial de Sociologia (Madrid, España, 1990). Versões em português: “A cidadela sociológica: algumas reflexões sobre ciência, desumanização e transcendência”, Universidade Federal da Paraíba, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Cadernos de Textos, n. 14 (maio), pp. 34-56. Também publicado sob o título “Ser e ciência”, na revista Humanidades, Universidade de Brasília, vol. 7, n. 2 (1991), pp. 134-143.
Fonte: Sociologia itinerante (inédito)

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