Em entrevista concedida ao Fazendo Media, o procurador do Ministério Público do Trabalho da 1ª Região, Wilson Roberto Prudente, fala sobre as características dos crimes de trabalho escravo praticados em diferentes regiões do Brasil. Wilson é advogado e mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Um dos seus livros publicados, Crime de Escravidão, apresenta uma análise da Emenda Constitucional 45 de 2004, com relação às alterações da competência material da Justiça do Trabalho.
Quais foram os casos mais comuns de trabalho escravo nos últimos anos?
Nós temos alguns casos urbanos, como os bolivianos que vêm para o Brasil prestar serviço nas confecções de São Paulo e alguns casos pontuais na construção civil. Mas a regra problemática do trabalho escravo é rural, principalmente na região norte. São áreas da região amazônica que foram ocupadas de forma irregular. Os trabalhadores são levados para essas áreas para derrubar árvores e outras atividades ligadas à pecuária. Já na região sudeste, existe casos ligados à plantação da cana-de-açúcar. Nós do Ministério Público do Trabalho tivemos a atuação, inclusive ações judiciais nessas zonas rurais.
Existem casos onde o trabalho escravo está travestido de trabalho terceirizado, comum tanto nas fazendas como nas indústrias. A terceirização do trabalho é um entrave para que a justiça possa chegar e punir esta prática?
Eu não entendo que a terceirização seja um entrave. No caso do trabalho agrícola, os donos daquelas propriedades onde têm o trabalho escravo são empresas ou pessoas físicas. No caso, o gato, que normalmente mora na região e é o intermediador na mão de obra no campo. Ele vai às regiões mais pobres do país recrutar mão de obra escrava. A própria legislação rural determina a responsabilização do formador de serviços, o fazendeiro. O que ocorre é que em alguns casos é preciso investigar para saber quem é o verdadeiro proprietário daquela terra, porque nós estamos falando de uma prática de múltiplas ilegalidades, dentre elas a apropriação de terras públicas.
Eles pegam determinado transporte aéreo, sobrevoam a região, loteam a terra pública e depois vão os trabalhadores para derrubar as florestas e preparar a terra para criação de gado. E em outros casos é fácil identificar a empresa ou a proprietária da fazenda. A punição pode levar do pagamento de danos morais coletivos à responsabilidade penal. A responsabilidade mais efetiva tem sido as ações por indenização por danos morais em ações civis públicas, ajuizadas pelo Ministério Público do Trabalho. A Procuradoria da República também tem ajuizado em alguns tribunais para a responsabilização. O fato de haver terceirização, sobretudo na área rural, não implica em afastar responsabilidade. O contratante tem que fazer a procedência daquilo que está contratando e verificar da legalidade dos contratos de trabalho da empresa terceirizada.
Quem paga então é o dono da propriedade, e para onde vão estes valores pagos?
Existem duas modalidades de responsabilização do empregador. Na ação civil pública, a condenação vai para um fundo de reparação do dano: o Fundo de Amparo do Trabalhador (FAT). Já na ação civil coletiva, a indenização serve em favor das vítimas, ou seja, em favor das pessoas que foram escravizadas. Além da responsabilização judicial, existe também a responsabilidade administrativa, ou seja, os auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego aplicam também multas administrativas a esses empregadores.
Quais são os crimes que costumam ser praticados de forma conexa ao do trabalho escravo?
Um exemplo de crime conexo é o crime ambiental, como no caso da Amazônia, onde os trabalhadores derrubam árvores. Em muitos casos as castanheiras, e outro crime conexo quase sempre presente é o tráfico de mão de obra. A própria legislação criminal afirma ser crime transportar trabalhadores de uma localidade para outra dentro do território nacional. Salvo hipótese de trabalhadores especializados, o que não é o caso. Não se justifica em um país que tem tanto desemprego trazer uma pessoa do Maranhão para trabalhar em Campos de Goytacazes (RJ). Portanto, quando existe esse transporte de mão de obra sem autorização do Ministério do Trabalho, se caracteriza uma infração trabalhista e também uma infração penal. Isso é um crime contra a organização do trabalho, previsto no artigo 149 e 203 em diante no código penal brasileiro.
O professor de geografia da FFP-UERJ, Paulo Alentejano, citou um exemplo lamentável durante a Campanha pelo Limite da Propriedade de Terra, em 2010. A empresa J. Pessoa, ao mesmo tempo que mantinha trabalho escravo em sua fazenda em Campos de Goytagazes (RJ), utilizava de um excelente aparado industrial de produção com profissionais assalariados na sua indústria alcooleira, no interior de São Paulo. O que o Sr. pode falar sobre este fenômeno?
Hoje nós não podemos mais tratar a indústria açucareira ou alcooleira como uma indústria artesanal, como existiu até a década de 50. Hoje ela é uma indústria química. Dificilmente existe trabalho escravo com trabalhadores ligados diretamente à produção da usina. Mas o lugar onde é possível encontrar trabalho escravo, se não houver fiscalização, é no plantio e na colheita. Esses trabalhadores são colocados em situação de moradia extremamente degradantes.
A modalidade de trabalho escravo na região norte normalmente existe com capangas armados. Caso o trabalhador tente fugir, ele pode correr risco de ser assassinado. Já na região sudeste é a escravidão por dívida. A pessoa ao ser deslocada de um estado para outro, o gato vem cobrando tudo dele, em uma lógica que quanto mais ele trabalha mais ele se endivida. Em alguns casos, estes trabalhadores fogem mesmo. Todas os casos em que o Ministério Público interferiu foi porque houve denúncia destes trabalhadores.
De 2003 a 2010 foram registradas denúncias envolvendo 7.400 pessoas em situações de trabalho escravo. Sendo 144 só em 2010. Isso prova que nos últimos anos houve uma diminuição do crime?
O que justifica esta queda são as operações móveis do Ministério do Trabalho e Emprego, a atuação das forças tarefas. Agora esta atuação precisa ser permanente, porque se houver qualquer arrefecimento, esta prática volta a acontecer. Mesmo com estas ações do MTE, esta prática sobrevive. Na região norte, o trabalho escravo é tão perigoso que os trabalhadores não se comunicam com outras pessoas. Porque são regiões que existem pistolagem e geralmente só confiam nos padres para confidenciar as situações. Muitas das denúncias vieram pelas pastorais da Igreja. O importante é chamar atenção para esta distinção entre a região norte e sudeste, onde a ausência de liberdade na região sudeste é dissimulada mas presumível.
Uma outra modalidade de trabalho escravo, que em termo humano é muito considerável, é o trabalho doméstico. Já tive procedimentos na Procuradoria do Espírito Santo, onde famílias buscaram crianças de 10 a 12 anos de idade para tomar conta de seus filhos. Essas crianças não tinham a respectiva liberdade, além dos maus tratos. O trabalho escravo se dá distante do alcance das autoridades.