500 Anos da Reforma inspiram ação corajosa do movimento Nós Também Somos Igreja

Por Mauro Lopes

Inspirados pela celebração dos 500 anos da Reforma, integrantes do movimento católico Nós Também Somos Igreja irão pregar nas portas de igrejas em 22 países neste domingo (29) cinco teses pela reforma imediata da Igreja Católica. No Brasil, a ação corajosa acontecerá em São Paulo, João Pessoa e outros municípios da Paraíba.

A iniciativa remete a Martinho Lutero, que em 31 de outubro de 1517 enviou uma carta ao arcebispo de Mainz, com as 95 teses que marcam o início da Reforma Protestante. Hoje se sabe que a afixação das teses na porta da Igreja do castelo de Wittenberg (Alemanha) não teria ocorrido. Mas tornou-se o símbolo da reação do padre Lutero ao estado da Igreja na ocasião.

Por isso, as cinco teses do Nós Também Somos Igreja serão pregadas nas portas de igrejas católicas em todo o mundo:

1. Democratização da estrutura eclesiástica (Cúria Romana e diocesanas, paroquiais);
2. Ordenação de mulheres na perspectiva de um novo modelo ministerial;
3. Prevalência do Amor e da Justiça acima do direito canônico;
4. Celibato opcional, permitindo que os homens ordenados possam assumir a condição matrimonial;
5. Acolhida de todas as mulheres e homens na comunidade cristã independente das condições e situações em que se encontrem.

Em São Paulo, segundo Edson Silva, da direção do movimento, será realizada uma roda na praça diante da Igreja do Pátio do Colégio para leitura reflexiva das teses de Lutero e uma conversa sobre as cinco teses para a reforma da Igreja hoje; a seguir, os participantes caminharão até a Praça da Sé para afixar as teses nas portas da catedral.

Na Paraíba, a mobilização será liderada pelo grupo Kairós – Nós Também Somos Igreja. Alder Calado, liderança histórica da Igreja brasileira e um dos pioneiros do movimento no Brasil, ao lado do padre José Comblin (1923-2011), um dos principais teólogos da Libertação, disse que haverá celebrações em João Pessoa e em comunidades rurais do Estado, como Sobrado. Na capital, o ato celebrativo será na capela ecumênica da UFPB. “Teremos uma de oração inicial, rezaremos um salmo, leremos o Evangelho, entremeados de cânticos. Haverá tempo de silêncio e partilha. Em seguida, partimos para ouvir um breve trecho do livro “Vocação para a Liberdade”, de autoria de José Comblin. Em seguida, uma exposição dialogada, contextualizando a Reforma e as lições que dela somos chamados a recolher, focando depois nos cinco pontos que buscam sintetizar os principais anseios por reformas, na Igreja Católica Romana. Terminaremos com oração e canto”, explicou Calado.
Roteiros similares acontecerão nos 22 países, em alguns deles com celebração eucarística. O espírito é de reencontro e retomada do caminho comum com os filhos da Reforma e de recuperação do melhor da trajetória protestante. “Fazemos a mesma reflexão que vem ganhando força entre os que apoiam o papa Francisco na Cúria romana: foi uma ação do Espírito Santo”, disse Edson Silva. Para ele, “o caminho de volta, que significa aproximação com as demais igrejas cristãs, é fundamental”.

Alder Calado, em entrevista por escrito ao Caminho Pra Casa, apresentou uma visão poética/profética da Reforma: “A Reforma -entendida em seu sentido amplo, inclusive alguns séculos antes de Lutero, protagonizada também pelos movimentos pauperísticos – nos inspira, não tanto para uma vã tentativa de reeditá-la, mas para dela colher lições que nos ajudem, hoje, a enfrentar velhos e NOVOS desafios – da(s) Igreja(s) e do mundo! Fazer memória da Reforma representa para nós prestar um tributo àquelas vozes proféticas, pronunciadas por meio das variadas expressões de reforma, antes, com e depois de Lutero, que ousaram ‘obedecer mais a Deus do que aos homens’ (At 5,29), fazendo prevalecer, por vezes à custa da própria vida, os valores do Reino de Deus e Sua justiça: justiça, paz, liberdade, solidariedade, partilha, serviço aos mais desvalidos, fé, esperança, amor, para além de seus/nossos limites.”

Outro integrante do Kairós, o padre casado Eduardo Hoornaert, historiador e teólogo, apresentou em artigo no site do movimento uma bela definição de Lutero: “um teólogo católico que protesta, um católico protestante”. Um trecho da continuidade do artigo: “Passando a vida toda em ambiente católico e se relacionando com católicos, ele entendeu seu protesto como uma tentativa de reforma da igreja católica. O protestantismo propriamente dito lhe é posterior. O que importa entender é que Lutero significa a quebra de um pensamento cristão único que vigorou durante mil anos, grosso modo entre os anos 500 e os anos 1500. Os polígonos formados, em diversas circunstâncias de tempo e espaço, pela quebra do pensamento único, conservam suas peculiaridades. Eles não se fundem em globos uniformes mas apresentam peculiaridades. Lutero abre a porta para que, com o tempo, apareça um islamismo poligonal, um hinduísmo poligonal, um catolicismo poligonal, etc. Um processo de longa duração, que, vivido em profundidade, opera a derrubada da pastoral do medo, assim como anima o cultivo da pastoral do diálogo, da misericórdia e da esperança.”

O movimento: surgimento e perspectivas; encontro mundial no Brasil

O Nós Também Somos Igreja existe desde 1995, impulsionado pelo protagonismo do movimento leigo na Áustria. O país esteve no centro da resistência ao papado conservador de João Paulo II e depois de Bento XVI.

O estopim do movimento aconteceu no início dos anos 1990 com a revelação de que o cardeal de Viena, Hans Hermann Groër, cometera por anos abusos sexuais contra crianças. João Paulo II recusou-se a punir o cardeal e protegeu-o até sua morte, em 2003. O caso levou ao lançamento do célebre Apelo do Povo de Deus, com uma agenda para a reforma da Igreja, baseada fundamentalmente nos pontos que hoje estão na ordem do dia com Francisco.

Desde 1995 até hoje, o Apelo foi assinado por mais de dois milhões e meio de pessoas em todo o mundo. Inicialmente, também houve o apoio de muitos bispos austríacos, mas o Vaticano ordenou que retirassem sua adesão. Em 1996, em Roma, numa reunião com católicos e católicas de todo o mundo (quase todos leigos, devido à repressão da Cúria), nasceu o Internacional Movement We Are Church (IMWAC), Nós Também somos Igreja.

A hostilidade da Cúria e dos papas Wojtyla e Ratzinger ao movimento nunca cessou, tendo a Áustria como epicentro dos confrontos. Eles foram renovados em 2009, quando os bispos austríacos protestaram veementemente contra a revogação da excomunhão aos lefebvrianos (que, entre outras coisas, recusam-se a reconhecer o Concílio Vaticano II); e quando os leigos rebelaram-se Linz e outras regiões do país contra a nomeação por Bento XVI do padre ultraconservador Gerhard Wagner como bispo auxiliar da diocese. Ele havia definido a saga de Harry Potter de “satânica”, o furacão Katrina como um “castigo divino” e os gays de “doentes psiquiátricos” –Wagner acabou renunciando meses depois.

O clima mudou com o Papa Francisco, que recebeu a direção do movimento em 2016, durante o III Encontro Mundial dos Movimentos Populares, em Roma. Mas a relação com a hierarquia eclesial ainda é difícil: “Com a chegada do Papa Francisco, tem crescido o clamor por reforma. Mesmo assim, as estruturas remanescem pesadamente. Por vezes, pensamos ser mais difícil mudar as estruturas da(s) Igreja(s) do que as macroestruturas da sociedade.”, constatou Edson Silva. Em São Paulo, por exemplo, o movimento é francamente hostilizado pelo arcebispo dom Odilo Scherer.

Há uma perspectiva renovada para o Nós Também Somos Igreja, com as reformas de Francisco. O movimento prepara-se para ser um dos principais protagonistas do II Fórum Internacional do Povo de Deus, que acontecerá de 15 a 18 de novembro de 2018 em Aparecida –estão previstos outros fóruns, em 2019 na África e em 2020 na Ásia.

Com Francisco e no espírito da celebração dos 500 anos da Reforma, respira-se novamente um clima de renovação e re-ligação da Igreja Católica com suas origens e tradição.

Fonte: Outras Palavras
http://outraspalavras.net/maurolopes/2017/10/27/500-anos-da-reforma-inspiram-acao-do-nos-tambem-somos-igreja/

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