Caminhada de fé no coração do mundo

Todo bom livro contém certa sacralidade. Os religiosos descrevem revelações da Divindade, expressas em palavras humanas e manifestadas na história de pessoas comuns. Outros escritos são sagrados por desvendarem, para além das tramas da vida pessoal, familiar e social uma inteligência amorosa que conduz os acontecimentos a uma síntese interior, só possível de ser expressa com o coração.

Agora, ao completar 80 anos, Luiz Alberto Gómez de Souza nos presenteia com um livro denso e suculento, por ele intitulado: “Um andarilho entre duas fidelidades: Religião e Sociedade” (Rio de Janeiro, EDUCAM, Ponteio, 2015).

É mais que uma autobiografia, porque, ao narrar o itinerário da sua vida e da sua família, ele a situa no coração da caminhada de fé dos grupos mais expressivos e proféticos da Igreja Católica, nos últimos 50 anos, assim também como de uma militância social brasileira que lutou para transformar o país e o mundo.

Como uma verdadeira celebração, memorial de vida, Luiz Alberto relembra suas memórias de infância e juventude. E faz isso com tal acuidade de visão e vivacidade de imagens que, nós, leitores, nos sentimos como se ele nos pegasse pela mão e, ao nos conduzir pelos meandros da sua história, nos provocasse a retomar o itinerário que cada um/uma de nós fez.

A narrativa de Luiz Alberto, descrita nesse livro, tem várias etapas que são mais do que capítulos literários da história. E ela muda de patamar para um nível superior e quase místico, quando Luiz Alberto encontra Lúcia. A partir de então, o militante cristão e de esquerda se reveste de uma aura contemplativa. E, como Beatriz a guiar Dante pelo paraíso, o amor de um pelo outro se revela a energia misteriosa que passa a ser uma força mística que domina toda a vida, deles e da família. Essa energia amorosa os confirma na direção que tomam, os fortalece nas provações que, uma vez ou outra, encontram. E, principalmente, os delicia com a bênção dos filhos e as conquistas que, mesmo em meio às dificuldades, vão realizando.

Quem lê com atenção as reflexões que pontuavam os grupos de juventude de Ação Católica do final dos anos 50 em Minas Gerais e Rio de Janeiro passa a compreender melhor a evolução intelectual do jovem militante que da admiração e adesão ao pensamento de Jacques Maritain evolui para o Personalismo de Emmanuel Mounier e o integra com as lições aprendidas do Padre Vaz. Tantas décadas depois, nos faz bem reviver, nas páginas desse livro, os debates sobre a inserção da fé na Política e as dores de parto que fizeram nascer a AP (Ação Popular). Aqui se compreende porque o espírito dos antepassados espanhóis fez desenvolver em Luiz Alberto a garra de um Dom Quixote a enfrentar, não moinhos de vento, mas os riscos de uma inserção social e política em tempos de ditaduras e com filhos pequenos a cuidar.

Em sua itinerância iniciática, para se refazer da secura dos desertos que precisaram atravessar, Luiz Alberto e Lúcia tiveram a imensa sabedoria de recriar verdadeiros oásis repousantes, concretizados em belos e profundos encontros humanos de afeição e diálogo. Esse livro revela o jeito de ser de um casal com uma rara e impressionante capacidade de fazer amizades. Em meio a acontecimentos políticos nem sempre claros e a experiências de novos trabalhos, eles conseguem dar a luz a uma imensa rede de verdadeira fraternidade espiritual. E esses amigos e amigas pontuam cada etapa da caminhada de Luiz Alberto e Lúcia. São inúmeras pessoas, cada uma diferente da outra. Muitas se tornam quase protagonistas com eles dessa aventura teimosa em tornar fecundo o cotidiano. A algumas dessas figuras, como Dom Helder, Betinho e outros/as, Luiz Alberto dedica a segunda parte do livro, em uma memória de amigos que o marcaram. No entanto, em cada página do livro, do início ao fim, se sente que a fé na amizade tem primazia. A afirmação do valor fundamental desses encontros que norteiam a vida aparece de forma tão forte que esse livro de Luiz Alberto bem mereceria o mesmo título da obra de Raíssa Maritain: “As grandes amizades” (Agir, 1951).

Quem se aventura por essas páginas, escritas de forma luminosa e, ao mesmo tempo, despretensiosamente simples, descobrirá de forma muito clara a profunda unidade que liga fé cristã e compromisso social e político de transformar esse mundo. E, sem dúvida, essa pessoa poderá descobrir o segredo que está por trás de cada linha dessa narrativa: a amorosidade que levou esses irmãos a, cada vez, superar todas as dificuldades e avançar mais e mais na direção do objetivo que guia a vida inteira dessa família: mergulhar o mundo no amor solidário. Luiz Alberto é mesmo um andarilho entre duas fidelidades: a Religião e a Política, porque sempre soube ser fiel à vocação divina de ser não apenas caminhante, mas peregrino.

Assim, nós também, “rodeados dessa grande nuvem de testemunhas, deixemos de lado tudo o que nos atrapalha e corramos com perseverança, mantendo os olhos sempre fixos em Jesus, autor e consumador da nossa fé”(Hb 12, 1- 2).

(22-11-2015)

“Ou haverá segurança para todos, ou ninguém estará seguro”, defende Luiz Eduardo Soares

Luiz Eduardo Soares, cientista político e coautor do livro Tropa de Elite. Foto: Leandro Neves.

Uma das principais referências sobre o tema da segurança pública no Brasil, o antropólogo e escritor Luiz Eduardo Soares é um árduo defensor da desmilitarização da Polícia Militar e da legalização das drogas. Foi um dos elaboradores da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 51, que aponta para a mudança radical da estrutura das polícias e tramita no Congresso desde 2013. Atualmente está dedicado aos seus livros e roteiros de cinema, além de dar aula na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e administrar seu blog.
O pesquisador foi secretário no governo do Rio, quando foi exonerado por Garotinho nos anos 2000 ao combater a banda podre da polícia, e no governo Federal durante o primeiro mandato de Lula. É coautor do livro Tropa de Elite, cujo filme gerou um público de milhões de telespectadores. Na entrevista, ele fala sobre a atual conjuntura política do país, as rebeliões nos presídios e a greve da Polícia Militar. Apresenta um possível cenário nas eleições de 2018 e medidas para estancar o nível de violência no país que, segundo ele, está associada ao nosso racismo estrutural de cor e classe e à tradição autoritária herdada da ditadura.
Quais as suas impressões sobre a atual conjuntura, de tudo que vem acontecendo nos últimos anos e a instabilidade política?
Sua gênese mais recente aponta para a natureza corrupta e manipulativa da decisão pelo impeachment: um enorme movimento corrupto de gangues e políticos que se interessavam por livrar-se da Lava Jato convocando o grupo do PMDB, que é o mais experiente nessa área de corrupção e proteção contra investigações. E por outro lado aplicar uma política de restrição ou desconstituição dos direitos sociais, trabalhistas, etc. Uma intervenção de natureza criminal e econômica com uma face política dramática. Trata-se de um pacote ultra liberal que não encontraria na população apoio eleitoral e, portanto, não teria legitimidade, autoridade moral e política, que provém das urnas na decisão popular. Foi uma manobra esperta, que visou agregar o apoio da grande mídia e da elite em torno da presidência interina do Michel Temer e do seu grupo para a implantação dessas políticas.
“O PT não inventou nem é o principal núcleo de corrupção, que está nos partidos tradicionais, sobretudo no PMDB, mas não ficou imune e acabou se rendendo a velhas práticas sempre em nome da governabilidade e manutenção do poder”, afirmou. Foto: Leandro Neves.

Evito a palavra golpe, apesar de ter todas essas características indefensáveis e ilegítimas, porque me parece que sua narrativa tende a obscurecer a responsabilidade do PT. O Temer era vice, eles foram capazes de promover esses políticos a pessoas chaves do seu governo. E o desastre econômico por mais que tenha também múltiplas causas internacionais e outras internas, que até independem da administração pública, foi basicamente suscitado ou promovido pelo primeiro mandato de Dilma. Numa situação de crise muito evidente ela garante nas eleições de 2014 que o Brasil continuaria sua trajetória de crescimento e redução de desigualdades, já sabendo que isso não era verdade. Logo depois toma medidas pertinentes ao programa do adversário, e se afasta da sua própria base eleitoral com essa traição política. Não consegue a confiança que buscava das elites ao aliar-se aos seus adversários para manter-se no poder diante de uma conjuntura tão negativa.
O PT não inventou nem é o principal núcleo de corrupção, que está nos partidos tradicionais, sobretudo no PMDB, mas não ficou imune e acabou se rendendo a velhas práticas sempre em nome da governabilidade e manutenção do poder. Esse tipo de postura liquefez sua grande legitimidade popular e social, e acabou concorrendo para a produção da crise. É uma situação muito complexa. Está se constituindo uma polarização pró e contra Lava Jato, e boa parte da esquerda está anti Lava Jato o que vai promover uma aliança dos operadores do crime com os garantistas que têm em mente a defesa da democracia. Acho que a única saída política e ética é separar o joio do trigo.
Qual a sua opinião sobre a Lava Jato?
Promoveu grandes avanços na recuperação da legitimidade da justiça, que pela primeira vez começou a olhar para o andar de cima . Foi capaz de identificar elos criminosos atravessando o Estado brasileiro e núcleos econômicos poderosos, entretanto ocorreram procedimentos inaceitáveis, violações de direitos e abusos. Precisa distinguir o que é abuso para evitar a sua repetição, do que é legítimo e o que foi impositivo. Definir o juiz Sergio Moro como arque inimigo, representante do imperialismo, é um atraso de vida extraordinário e serve ao pior do legado do PT. O partido quer aproveitar a situação pra lavar suas mãos, sendo que elas estão sujas. Ao invés da autocrítica, prefere eleger mais um bode expiatório: a Lava Jato e o Moro. Isso não significa que eu concorde com iniciativas absurdas, como a divulgação daquele áudio do Lula e a Dilma. Qualquer posição polarizada e muito simplória nos levaria de um lado a aceitar e definir a Lava Jato como a salvação nacional e extrair daí consequências anti políticas graves, que acabam incitando golpes, intervenções militares e comportamentos fascistas. Também seria um equívoco deixar de ver os abusos e violações, mas negar a operação me parece um despropósito total.
Vendo a condução da Lava Jato e as pessoas que estão sendo presas e delatadas para aonde vamos até as eleições de 2018?
O problema é que houve tal judicialização da política e uma interpenetração entre cálculos políticos, trajetórias, processos propriamente políticos e procedimentos judiciários investigativos e policiais, que se torna inviável qualquer antecipação. A Lava Jato pode provar com provas pesadas um personagem chave, e aí toda a sua prospecção cai por terra. A direita está desesperada, porque não obstante todos os seus pecados o que houve com o PT foi um verdadeiro massacre midiático e político para generalizar a crítica a toda a esquerda e pulverizar um passado recente e a memória popular. O primeiro mandato do Lula foi o mais feliz, prodigioso, positivo dos mandatos presidenciais que conhecemos na nossa história. Não à toa o Lula sai com 80% de aprovação ou mais, isso não é trivial. O que a direita está tentando é dissipar essa memória, daí essa brutalidade simbólica. Mas não é fácil destruir uma memória que foi profundamente enraizada nas experiências marcadas pela redução da desigualdade.
O Lula continua sendo o grande personagem, mas no segundo turno sua vitória dependeria muito do adversário. Tem o Alckmin, que pode vir a ser pego também na Lava Jato, mas até agora passou ao largo e elegeu o prefeito em São Paulo sem passado político e mostrou sua força. E se ele conta com o apoio do PSB, que está sendo negociado há muito tempo, a coisa pode vir a se complicar no sentido de que o PSDB tem outros candidatos: Serra e Aécio. Se o PSDB não lhe der a legenda pode concorrer pelo PSB. Uma grande incógnita é a Marina, que é a pessoa mais significativa que sobrevive a essa tormenta. Vai receber um atestado de honestidade, porque sai incólume desse processo que abala os políticos. Mas é de um partido muito frágil e recente, embora tudo possa mudar por causa da Lava Jato. E ainda tem o Ciro Gomes que está em campanha tem tempo e é uma inteligência refinada com uma extraordinária capacidade de persuasão. Pode ser que consiga atrair as esquerdas numa grande frente, sobretudo se o Lula não for candidato. Mas sua intolerância e prepotência intelectual podem ser problemas graves, no momento em que precisamos apostar no diálogo para enfrentar e dissolver o ódio que emperra os avanços no país.
Você acha que esse fenômeno de várias rebeliões simultâneas tem alguma correlação na pirâmide social com o momento que vivemos?
“A grande maioria é pobre e negra, é o racismo estrutural operando seja na dimensão da classe ou da cor”, disse em relação aos presos. Foto: Leandro Neves

Minha impressão, que vem da intuição e da minha experiência, diz que sim. Os contextos são sempre relevantes. Existe a articulação das organizações criminosas com tentáculos que se espraiam pelo Brasil, de modo que a explosão aqui pode eclodir noutra acolá por atender a uma mesma liderança e condução “política”. Não é só uma determinação social e econômica, há também uma espécie de acerto político. No sistema penitenciário o mais relevante é que o Estado comete o principal dos crimes ao não aplicar a Lei de Execuções Penais (LEP), que foi promulgada em 1984 e até hoje não foi cumprida no Brasil. É a base a partir da qual temos que pensar o sistema penitenciário e extrair daí conseqüências. Os presos estão cumprindo essas penas mais o excedente ao contrair tuberculose, doenças sexualmente transmissíveis, sofrendo torturas psicológicas ou físicas, vivendo em situações absolutamente desumanas como beber água de privada, etc. Isso não está escrito na pena, mas está incluído na sentença. Estão sofrendo uma sobreposição de penas, que são crimes perpetrados pelo Estado. Cerca de 40% dos presos estão em prisão provisória no Brasil, oficialmente temos 640 mil presos mas já se diz 700. Tínhamos cerca de 239 mil em 2002: quase triplicou, temos a quarta maior população carcerária e a que mais cresce no mundo.
Você atribui esse cenário a que?
A grande maioria é pobre e negra, é o racismo estrutural operando seja na dimensão da classe ou da cor. As bases da polícia estão aí representadas e espelhadas. Temos 12% cumprindo pena por homicídio doloso, por que tão pouco? Temos 58 mil homicídios dolosos por ano no país, um dos mais absurdos do mundo, uma tragédia, e mais de 90% deles não são nem investigados. São registrados, que é de lei, abre se o inquérito mas não há nada a dizer. Então temos essa taxa de impunidade em relação ao crime mais grave: é como se o atacante oficial perde 9 de cada 10 penaltis e é o cobrador oficial. Isso é um escândalo. Alguns deduzem que o Brasil é o país da impunidade, mas temos a quarta população carcerária do mundo e é a que cresce com maior velocidade. Uma inversão completa de valores, isso mostra que há outras prioridades: temos 28% por transgressões associadas à negociação de substâncias ilícitas, que é o subgrupo que mais cresce. Temos a ação perversa da Lei de Drogas, que é um dos nossos maiores problemas. O tipo de focalização seletiva na persecução criminal e na repressão policial é iníqua, injusta e contrária à constituição. A polícia mais numerosa que está presente 24 horas no Brasil é a militar, a qual é proibida de investigar. Mas é instada a produzir, cuja produtividade é entendida por prisão e apreensão de armas e drogas.
E as mortes também, não?
Há também a brutalidade policial letal, que é outro elemento importante porque o Brasil é um dos campeões mundiais: nossos policiais estão entre os que mais morrem e são os que mais matam no mundo. Mas no campo da legalidade, a PM é proibida de investigar e instada a prender. Ela tem que ser produtiva porque os governos pressionam, os comandos, a população, a mídia, então as nossas prisões estão sendo preenchidas com 85% de prisões em flagrante delito sem investigação. A lei de drogas viabiliza esse crime seletivo, e com isso não são os grandes operadores do negócio das drogas no mundo e no Brasil, aqueles que lavam dinheiro, os que são presos. Prendemos os aviõezinhos, os que operam nas ruas, os vapores, os vendedores para o consumo do varejo. Os que fazem um ganho para sobreviver e não têm vínculo orgânico com o crime organizado. Jovens com baixa escolaridade, negros, sem comportamento violento ou vinculados às estruturas organizadas. Ficam 5 anos presos porque venderam maconha, e para sobreviver se organizam nas facções, que exigem depois lealdade na saída. Estamos plantando uma mina sobre os nossos pés, gastando muito para tornar as pessoas piores e a sociedade mais violenta. É uma injustiça tremenda com esses jovens, que acabam tendo suas carreiras criminosas financiadas, impulsionadas e induzidas pelo Estado.
E quais alternativas temos para mudar essa estrutura e não ficar só nas críticas?
A legalização das drogas, uma educação qualificada, vários elementos, desde que ocorra uma incrível redução da desigualdade. Mas mesmo assim não teria solução para o problema da droga, que se consome no mundo inteiro. Teria a redução daqueles que pelas dificuldades da vida correm atrás de fazer o ganho, os vapores e os pequenos distribuidores, isso seria uma ajuda. É preciso atuar em todas as frentes, nenhuma pode ser abandonada. As mais importantes como educação, redução da desigualdade, mudança da matriz energética, redução do desafio climático, a questão ambiental e das iniquidades, etc. Mas de imediato acabar com esse casamento perverso entre o modelo policial irracional, que é o único no mundo e herdamos da ditadura, e uma política de drogas absurda. Podemos salvar muita gente.
Por que as pessoas estão sendo mais presas? A Lei 11.343 aparentemente veio flexibilizar as relações do Estado com as drogas, mas na verdade gerou a criminalização da pobreza numa escala sem precedentes. Suprimiu a quantificação de peso e quantidade, que distinguiria traficante de usuário. Passa a depender do juiz ou juíza a decisão, se a pessoa é considerada traficante vai presa por 5 anos porque é crime hediondo no Brasil. E se é considerado usuário não vai preso e o consumo continua sendo visto como crime, mas são previstas medidas administrativas, penas alternativas, indicações de terapia e coisas do tipo. Acontece que um rapaz branco de classe média que é pego com 50g de maconha, por exemplo, diz ao juiz: é realmente muita maconha, mas eu detesto me relacionar com criminosos e para sustentar o meu vício tenho de abastecer a minha cesta de drogas e para evitar eles compro mais quantidade. Ah, tudo indica que você seja um bom rapaz, tem um bom caráter e índole, e agora vai tratar desse vício. Se é um rapaz negro e pobre que diz a mesma coisa será considerado um desrespeito, abuso e a sentença ainda vai aumentar.
“A lei de drogas gerou a criminalização da pobreza numa escala sem precedentes”, criticou. Foto: Leandro Neves

Esse preconceito já é praticamente naturalizado, não?
Isso tem a ver com as classes sociais, os pobres são estigmatizados e vistos como criminosos. Os negros são vítimas do preconceito do nosso racismo estrutural, então se há a possibilidade o magistrado vai operar como o Brasil opera. Na média será a reprodução da desigualdade social e do racismo brasileiro, e é esse inferno que está acontecendo. Desviar essa discussão para a educação, por exemplo, é um imenso equívoco porque é um consenso nacional. A gente vai salvar gente agora, as pessoas estão morrendo dentro e fora dos cárceres. São histórias de vida naufragando, biografias destroçadas, isso é uma aberração que não é discutida. Sou favorável à legalização das drogas desde quando ninguém falava, agora até a grande mídia e grupos conservadores têm observado que países estão avançando nisso.
O próprio ex presidente FHC colocou o debate em evidência…
Foi um mérito dele e devemos esse reconhecimento, mesmo sendo mais radical entendo que qualquer passo é válido. O ideal é a legalização, que não significa liberação como hoje. Porque existe a proibição na lei, mas na prática é outra coisa. A ideia de que legalizando a gente estimula o consumo é uma balela, já está provado em outros países. O acesso já existe, se trata de regulamentar. Vivemos uma anarquia que além de gerar violência, truculência, muito dinheiro e corrupção, inclusive de políticos e forças policiais e o judiciário, gera também malefícios do ponto de vista da saúde. Porque muita gente morre por conta do consumo abusivo de cocaína, por exemplo, pela ingestão das substâncias que são adicionadas nela. No meu livro Tudo ou nada, a história de um brasileiro preso em Londres com quilos de cocaína, conto como a cocaína sai da selva amazônica colombiana e chega ao consumidor na Inglaterra com um preço seis vezes maior. Sobe independente do valor da unidade, porque a quantidade aumenta com a soma de outras substâncias. Então para superarmos a hipocrisia precisamos tratar a questão como uma coisa de saúde a sério e educação. Um grande exemplo é o álcool, nosso pior problema na área de drogas: temos 16 milhões de alcoólicos no Brasil, número infinitamente maior que os adictos de outras drogas.
Gera, inclusive, mais mortes e violências porque é o cara que pratica violência domiciliar, atropela alguém ou bate com o carro, etc.
É a droga que provoca os efeitos mais graves na sociedade brasileira, e ninguém está propondo sua criminalização ou proibição. Mesmo esquecendo os interesses econômicos da indústria não tem ninguém querendo proibir, até porque já temos conhecimento histórico no que deu a lei seca nos EUA. Busca-se regular, a humanidade sempre busca conviver com isso e reduzir os danos. Com o cigarro fomos muito efetivos, o Brasil foi o país que conseguiu reduzir em menor tempo sem a criminalização e apenas com a imposição de limites em campanhas.
Você pode aprofundar mais as suas propostas em relação às melhorias na polícia partindo da análise do que está acontecendo atualmente com a greve no Espírito Santo?
Ninguém tem razão, todos os lados dizem apenas uma fração da verdade. Aqueles que dizem que as polícias ganham pouquíssimo e trabalham em condições indignas estão dizendo a verdade, isso é muito mais grave do que a gente pensa. O nível de exploração da força de trabalho é extraordinário, sobretudo na PM porque são militares. Eles têm de acatar os comandos mesmo quando estes ultrapassam os limites dados pela lei. Uma doutora da UNB fez uma análise das UPPs no Rio a partir da denúncia de policiais e negociou com o governo um Termo de Ajuste de Conduta (TAC). Em muitas os policiais trabalhavam em condições análogas à escravidão, expressão do primeiro relatório que teve de ser mudado porque era muito agressivo ao governo. Pessoas trabalhando em containers de 50º com ar refrigerado quebrado, sem água, sem condições sanitárias, alimentação, proteção e armamento devido, com equipamentos vencidos, tendo de se alimentar na comunidade sem nenhuma articulação profunda e democrática com os moradores, etc. É um desastre total e as pessoas são jogadas ali depois de um rápido treinamento com a mentalidade herdade de uma cultura corporativa guerreira, belicosa, que define o suspeito como inimigo a ser exterminado. Faz parte da nossa triste tradição autoritária. Quando pedimos respeito à constituição e aos direitos humanos não podemos esquecer que eles estão sendo vítimas de violações graves.
Por outro lado quando o governo e setores da sociedade dizem que no Espírito Santo isso é uma chantagem inadmissível também têm razão. Você não pode fazer greve e manifestações na rua armado e impor sua força como forma de constrangimento, por isso quando os lados não vêem os outros fica o diálogo travado. Isso tem a ver com o direito à organização e sindicalização, porque o discurso é sempre: temos de reprimir e não podemos permitir sindicatos porque seria um caos, eles fariam greves, etc. Mas mesmo sem esses direitos eles fazem dezenas de greves, e nesse contexto selvagem sem acúmulo de experiência política e negociação. Como acabam nove entre dez greves? O governador acuado finalmente cede, ele que se negava a negociar e só ouvia da polícia o que lhe era trazido pelo comandante geral que é representante do governo na polícia. Ele convoca para o diálogo quem surgir como liderança carismática na rua. Quem se expressa melhor, emociona os colegas, aparece com mais veemência, não é necessariamente quem tem as melhores ideias ou a formação política mais sólida. Não são aqueles que têm relações mais orgânicas de representatividade com a categoria, e sim o líder corporativo por excelência. Assim o governador pavimenta carreiras políticas oportunistas e ultra conservadoras, nem todos são assim mas temos uma played de policiais dessa origem. Sem nenhuma proposta para segurança pública, para a sociedade, não pensam de fato nas transformações: só na categoria e de forma estreita, corporativista. Se tivéssemos organização legalizada haveria negociação, diálogo e limites, assim como os médicos têm.
A estrutura institucional da segurança pública tem de ser transformada, a polícia militar tem de ser desmilitarizada e com isso ter direito à sindicalização e organização política. Mas com muitos limites determinados legalmente. Essa ideia da proibição só poderia funcionar se por outro lado o Estado lhes garantisse privilégios, condições extraordinárias de trabalho, etc, se não é covarde e injusto. Por isso nenhum lado tem toda a razão, porque o comportamento selvagem e a atitude do Estado são inadmissíveis. Estamos preparando, forjando, esse momento de explosão.
“A estrutura institucional da segurança pública tem de ser transformada, a polícia militar tem de ser desmilitarizada e com isso ter direito à sindicalização e organização política”, sustenta Soares. Foto: Leandro Neves

Você pode explicar melhor o que é a desmilitarização da polícia?
As polícias em boa parte do mundo não são militarizadas, e não me consta que nos países mais desenvolvidos seja pior que no Brasil. É um descalabro essa associação absurda de que assim não haveria arma ou força, disseminada pelos que são contrários com um apoio político e ideológico por meio dessa demagogia. A desmilitarização significa que a polícia militar deixa de ser obrigada a ficar subordinada e organizada como espelho estrutural do exército: só haveria motivo para isso se as finalidades fossem as mesmas. O exército se organiza verticalmente e com hipercentralização decisória, porque o método de ação é o pronto emprego, o deslocamento de grandes quantidades de recursos humanos e materiais de forma muito ágil e convergente. Não pode fazer uma assembleia entre a decisão do superior e o cumprimento, daí a verticalidade, rigidez, centralismo. A finalidade do exército é defender o território e a soberania nacional fazendo a guerra, se necessário, então a polícia só deveria copiar seu modelo se o seu fim fosse esse também.
Mas de certa forma não temos uma guerra urbana e por isso que a polícia entra?
Essa é a primeira reação normal. Os levantamentos são precários, mas cerca de menos de 1% das atividades da polícia é o confronto. Esse é o impacto simbólico das notícias, embora a PM esteja agindo 24h por dia. Aqui no Rio certamente são números maiores, mas são situações que mesmo assim não correspondem à guerra. É um confronto que precisa ser tratado de forma peculiar, ter muita força, preparo, armamento, mas lembrando que sua intenção não é exterminar o inimigo. É cumprir a determinação legal, se for prender o suspeito usando o mínimo de força indispensável para o seu objetivo. Quando a vida do policial ou a de terceiros estiver em risco em qualquer polícia do mundo o uso da força letal é conforme a constituição dos mandamentos internacionais de direitos humanos. Mas se você pode imobilizar o outro sem matar, deve fazê-lo. No exército a preocupação não é a mesma, ainda que haja mandamentos internacionais com regras. Você não está diante de um cidadão suspeito, você está diante de um inimigo numa guerra.
As melhores experiências internacionais e nacionais mostram que o melhor policiamento é aquele cujo agente é um gestor local da segurança pública numa micro escala. Cabe a ele refletir sobre meios de prevenir problemas e enfrentar os que já existem não apenas com as suas armas ou forças, mas contando com um apoio das instituições governamentais ou da sua própria corporação. Um agente de resolução de problemas comunitários vai discutir com a sociedade local com cuidado, porque muitas vezes o discurso é o da vingança e do linchamento, que é estigmatizante, homofóbico, misógeno, etc. Ouvir a comunidade, dialogar, analisar os números disponíveis e definir as prioridades. Verificar se o local está abandonado, sem luz, mobilizar a prefeitura para que haja limpeza, sugerir aos jovens e comunidades que organizem ali esportes, lazer, atividades culturais. O policial não vai liderar esse processo, ele não é vereador nem líder comunitário, mas vai compreender a necessidade desses movimentos e compartilhar as informações que tem. Tem de ser treinado para isso e estimular a sociedade a assumir suas responsabilidades, e mobilizar também sua polícia para agir quando necessário. Agir preventivamente com mais inteligência em múltiplas dimensões.
Não é possível fazer isso sem o mínimo de autonomia e responsabilidade. Já vi grandes soldados com iniciativas brilhantes punidos pelos superiores, pois não podem ter iniciativa e pensar. Têm que obedecer e quem decide está num estado maior distante dali, e manda que a ação seja uniforme sem entender a complexidade, as variações, as especificidades locais. Então isso requer uma estrutura organizacional plástica, flexível e descentralizada, capaz de se adaptar às situações e conferir a quem está na ponta alguma liberdade e autonomia. Não é a liberdade absoluta, se está numa instituição tem de haver supervisão, articulação. Mas o grau de autonomia é inclusive o maior óbice à corrupção, porque quem tem autonomia se sente e é importante, respeitado, faz parte do todo. Não há óbice maior à corrupção do que o respeito da comunidade, a pessoa que se sente admirada não vai vender a sua posição num gesto corrupto por R$ 5,00. Não é com mais controles internos e externos, que são importantes, que vamos mudar a prática. É necessária uma estrutura descentralizada, flexível e plástica, com método comunitário e dialógico. Claro que há também a tradição da ideologia bélica que passa muito mais facilmente numa estrutura militar por razões óbvias, mas essa não seria a única razão nem a principal.

Golpe de Temer deixou 24,3 milhões de pessoas sem trabalho em 2016

O somatório dos percentuais de subocupação e da desocupação da força de trabalho no Brasil ficou em 20,6% em 2016 e atingiu o número recorde 24,3 milhões de pessoas que poderiam estar trabalhando, se não fosse a depressão econômica provocada desde o golpe parlamentar do ano passado.

Os dados foram divulgados nesta quinta-feira, 23, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). No quarto trimestre, o índice chegou a 22,2%. A quantidade de trabalhadores nessa condição indica um aumento de 6% em relação ao 3º trimestre de 2016 e de 31,4% frente ao quarto trimestre de 2015.

Entre as regiões analisadas pelo IBGE, a Nordeste registrou a maior taxa, de 33% no último trimestre de 2016, enquanto a menor partiu do Sul do país (13,4%). Entre os estados, a Bahia atingiu maior patamar, com taxa de subutilização em 36,2%, e Santa Catarina, 9,4%, a menor.

Leia material divulgado pelo IBGE sobre o assunto:

Regiões Nordeste, Norte e Sudeste têm taxas de desocupação acima da nacional

No 4º trimestre de 2016, a taxa de desocupação, no Brasil, foi estimada em 12,0%. Esta estimativa se manteve estável na comparação com o 3º trimestre de 2016 (11,8%). Frente ao 4º trimestre de 2015 (9,0%), a taxa apresentou elevação de 3,1 pontos percentuais. Também no confronto anual, houve crescimento desse indicador em todas as grandes regiões: Norte (de 8,6% para 12,7%), Nordeste (de 10,5% para 14,4%), Sudeste (de 9,6% para 12,3%), Sul (de 5,7% para 7,7%) e Centro-Oeste (de 7,4% para 10,9%). A região Nordeste permanece registrando a maior taxa de desocupação dentre todas as regiões.

A taxa de desocupação dos jovens de 18 a 24 anos de idade (25,9%) continuou a apresentar patamar superior ao estimado para a taxa média total. Este comportamento foi verificado tanto para o Brasil, quanto para cada uma das cinco grandes regiões, onde a taxa oscilou entre 16,5% no Sul e 30,3% no Nordeste. Já nos grupos de pessoas de 25 a 39 e de 40 a 59 anos de idade, este indicador foi de 11,2% e 6,9%, respectivamente.

As diferenças foram significativas na taxa de desocupação entre homens (10,7%) e mulheres (13,8%) no 4º trimestre de 2016. Este comportamento foi verificado nas cinco grandes regiões.

Por nível de instrução, a taxa de desocupação para o contingente de pessoas com ensino médio incompleto (22,0%) era superior à verificada para os demais níveis. Para o grupo de pessoas com curso superior incompleto, a taxa foi estimada em 13,6%, mais que o dobro da verificada para aqueles com nível superior completo (5,8%).

Região Nordeste é a única onde o percentual de mulheres (48,7%) na população desocupada é menor que o de homens (51,3%)

O percentual de mulheres (50,3%) na população desocupada foi superior ao de homens (49,7%) no 4º trimestre, o que se repetiu em quase todas as regiões. A exceção foi a região Nordeste, onde as mulheres representavam 48,7% da população desocupada. Na região Centro-Oeste, o percentual das mulheres foi o maior (52,9%).

O grupo de 14 a 17 anos de idade representava 8,4% das pessoas desocupadas, uma redução de 0,8 ponto percentual do 4º trimestre de 2015 para o 4º trimestre de 2016. A maior parcela era representada pelos adultos de 25 a 39 anos de idade (35,6%).

No 4º trimestre de 2016, 50,6% das pessoas desocupadas tinham concluído pelo menos o ensino médio. Cerca de 26,1% não tinham concluído o ensino fundamental. Aquelas com nível superior completo representavam 8,2%. Estes resultados não se alteraram significativamente ao longo da série histórica disponível.

Mulheres representam 39,1% da população ocupada na região Norte

Mesmo representando 52,2% da população em idade de trabalhar (14 anos ou mais de idade), as mulheres (43,0%) tinham uma representação menor que os homens (57,0%) na população ocupada. Este fato se repetiu em todas as regiões, sobretudo na Norte, onde os homens representavam 60,9% dos trabalhadores e as mulheres, 39,1% no 4º trimestre de 2016. Ao longo da série histórica da pesquisa este quadro não se alterou significativamente em nenhuma região.

A análise do contingente de ocupados no 4º trimestre de 2016, por grupos de idade, mostrou que 12,7% eram jovens, de 18 a 24 anos, e que os adultos, aqueles nas faixas de 25 a 39 anos e 40 a 59 anos de idade, representavam 78,2%. Já os idosos correspondiam a 7,3%.

A participação dos menores de idade (14 a 17 anos) na população ocupada apresentou tendência de queda do 4º trimestre de 2015 (2,2%) para o mesmo trimestre de 2016 (1,7%). Mesmo comportamento foi observado para o grupo de 18 a 24 anos que passou de 13,3% para 12,7%, no mesmo período. Para as demais categorias de idade a tendência foi de aumento na participação na população ocupada.

No 4º trimestre de 2016, no Brasil, entre as pessoas ocupadas, 28,1% não tinham concluído o ensino fundamental, 53,5% tinham concluído pelo menos o ensino médio e 18,5% tinham concluído o nível superior.

Nas regiões Norte (36,3%) e Nordeste (37,5%), o percentual de pessoas nos níveis de instrução mais baixos (não tinham concluído o ensino fundamental) era superior ao observado nas demais regiões. Nas regiões Sudeste (62,4%) e Sul (55,6%), o percentual das pessoas que tinham completado pelo menos o ensino médio era superior ao das demais regiões. A região Sudeste (21,9%) foi a que apresentou o maior percentual de pessoas com nível superior completo, enquanto a região Nordeste teve o menor (12,9%).

Proporção de trabalhadores por conta própria é maior no Norte e Nordeste

No 4º trimestre de 2016, a população ocupada era composta por 68,6% de empregados, 4,6% de empregadores, 24,5% de pessoas que trabalharam por conta própria e 2,3% de trabalhadores familiares auxiliares. Ao longo da série histórica da pesquisa essa composição não se alterou significativamente.

A pesquisa apontou diferenças regionais com relação à forma de inserção do trabalhador no mercado de trabalho. Nas regiões Norte (31,7%) e Nordeste (30,2%), o percentual de pessoas que trabalharam por conta própria era superior ao observado nas demais regiões. Em contrapartida, na categoria dos empregados foi constatado que as Regiões Sudeste (72,6%) e Centro-Oeste (71,7%) apresentaram participação maior destes trabalhadores.

Parte expressiva dos empregados estava alocada no setor privado (71,9%), 18,2% no setor público e os demais no serviço doméstico (9,9%).

Fonte: Brasil 247
http://www.brasil247.com/pt/247/economia/281842/Golpe-de-Temer-deixou-243-milh%C3%B5es-de-pessoas-sem-trabalho-em-2016.htm

Cinquenta anos após a sua publicação, ressoa, patético e atual, o clamor da “Populorum Progressio”

No próximo mês, mais precisamente em 26 de março, estaremos a comemorar meio século da publicação da Encíclica Social Populorum Progressio (O Desenvolvimento dos Povos) assinda pelo Papa Paulo VI, em 1967, menos de dois anos após o encerramento do Concílio Vaticano II, do qual também tornou-se emblemática a Constituição Pastoral Gaudium et Spes (sobre a Igreja no mundo de hoje).

Não estamos a comemorar apenas “mais uma encíclica”. De fato, pelo seu alcance social, pela relevância dos temas então enfrentados, bem como pela sua metodologia, trata-se de uma que avaliamos, ao lado das duas escritas por João XXIII e das mais recentes, da lavra do Papa Francisco, especialissimamente a “Lodato si”, – das mais relevantes, dentre as cerca quinze publicadas, desde a “Rerum Novarum”, do Papa Leão XIII (1891).

Nas linhas que seguem, buscamos 1) contextualizar o processo de elaboração desta encíclica social; 2) destacar suas grandes linhas; 3) rememorar aspectos de sua recepção, em especial na América Latina e no Brasil; e 4) enfatizar a dramaticidade e a atualidade do seu clamor.

1) Recobrando aspectos do contexto em que apareceu a Populorum Progressio

Tempos de densa efervescência, os que coincidiram com a publicação da Encíclica Social Populorum Progressio (O Desenvolvmento dos Povos). Nos vários continentes, cresciam, assustadores, os índices de miséria, de fome, de mortalidade infantil, ao mesmo tempo em que, entre as populações dos países centrais do Capitalismo, ostentavam-se situações de abundância e de consumo desenfreado: “Os povos pobres ficam sempre pobres e os ricos se tornam cada vez mais ricos.” (PP, n. 57). Vive-se o ápice dos conflitos decorrentes das perversas raízes do colonialismo, em especial nos países africanos, cujos povos vão conquistando, a duras penas, sua independência das velhas metrópoles européias. Emerbem “as jovens nações”, como a elas se referia, então. Diante das graves tensões entre Estados Unidos e União Soviética, um crescente número de países, nos diversos continentes, decidiam constuir um caminho de não-alinhamento a uma dessas potências, e se puseram a trilhar caminhos próprios, reforçando sua solidariedade na busca de autonomia. Tinham outras prioridades: em vez de tomarem partido de surviência a uma daquelas potências, optavam por reunir esforços no enfrentamento de tantos desafios de suas gentes, seja quanto ao combate à fome, à miséria, seja com relação a assegurar condições propícias para o enfrentamento exitoso de grandes dramas sociais, como o analfabetismo e o seu direito a uma inserção no cenário internacional justa e respeitosa de sua dignidade.

Respirava-se, com efeito, um cenário de intensas reivindicações de mudanças estruturais. Entre esses protagonistas mais destacados – operários, camponeses… – estavam os jovens estudantes, de várias partes do mundo, em especial na França, tendo sido um marco histórico expressivo o Maio de 1968, que já ao tempo da publicação da PP, se gestava nas escolas, nas praças e nas ruas de vários países.

A América Latina – sobretudo o chamado Cone Sul (Brasil, Chile, Argentina, Uruguai…) –, sufocada por um “rumor de botas” (Eder Sader), seguia mergulhada nam longo e tenebroso período de ditaduras civil-militares. Os povos andinos da Bolívia, do Peru, do Equador, da Colômbia… confrontavam-se com semelhantes desafios, enfrentados de modo aguerrido, a exemplo da atuação de jovens, camponeses e trabalhadores animados por figuras como Camilo Torres (padre, assessor dos universitários, assassinado na Colômbia, em 1966) e Che Guevara (assassinado na Bolívia, em 1967). Neste mesmo contexto de crescente efevescência, importa ter presente o alcance sócio-pastoral de alguns movimentos, a exemplo do Movimento Sacerdotes para o Terceiro Mundo, atuando sobretudo na Argentina.

Convém lembrar o importante impacto da Populorum Progressio, também, nos preparativos e na realização da Conferência Episcopal Latino-Americana, em Medellín (1968), da qual se diz, a justo título, ter sido – ao lado do emblemático “Pacto das Catacumbas” (Roma, novembro de 1965), a forma latino-americana de recepcionar o Concílio Vaticano II. Este é celebrado pelas condições que promoveu à introdução da Igreja Católlica Romana na modernidade, o mesmo, todavia, não acontecendo em relação ao mundo dos pobres, em que pesem algumas referências significativas, em alguns dos seus dezesseis documentos.

No processo de elaboração deste documento, impõe-se uma menção. Graças a uma densa e longa atuação, em vários países do mundo, como pesquisador e como assessor, em sua área, é sabida a contriubuição do Pe. Louis-Joseph Lebret, colaborador próximo também do Papa Paulo VI. Tornou-se célebre, inclusive no Brasil, desde final dos anos 40, a contribuição do dominicano Pe. Lebret, fundador do Movimento Economia e Humanismo, tendo inspirado fecundas iniciativas de solidariedade com povos do Terceiro Mundo. Na França, ainda hoje, goza de reconhecimento público o CCFD – Commité contre la faim et pour le développment.

Já duante o Concílio Vaticano II, a figura de Lebret constituía uma referência entre os assessores para temas sociais. Mas, foi decisiva sua participação efetiva no processo de redação da Populorum Progressio, tal a confiança e tal o reconhecimento que lhe foarm devotados pelo próprio Paulo VI. Lebret não viveria o suficiente para presenciar a publicação da Populorum Progressio: fez sua passagem um ano antes (1966) da publicação da mesma encíclica.

2. Quais os enfoques mais enfáticos desta Encíclica do Papa Paulo VI

Do ponto de vista de sua estruturação, a Populorum Progressio, além da introdução (nn.1- 5) e da conclusão (nn. 76-87), comporta duas partes: a primeira, que vai do n. 6 até o n. 42, intitula-se “Para o desenvolvimento integral do homem”, enquanto a segunda parte estende-se desde o n. 43 ao n. 75, trazendo por título “Para um desenvolvimento solidário da humanidade”. Segue um roteiro similar ao de outras precedentes, em especial as mais recentes (Em especial, o Papa João XXIII, em suas famosas encíclicas Mater et Magistra e Passem in de Terris). Sente-se uma inspiração no já conhecido método “Ver-Julgar-Agir”. Sendo assim, trata de expor “dados do problema”, isto é, destacar impasses e desafios axiais, enfrentados pela humanidade. Em seguida, rememora os esforços da Igreja, à luz do Evangelho, e de seus predecessores, ao enfrentarem outros desafios, em sua época. Em seguida, cuida de aprofundar a reflexão sobre os desafios em tela, buscando situar suas raízes, sublinhando ambivalências e contradições a serem enfrentadas e superadas. Por último, trata de apontar pistas de superação, sempre à luz da Doutrina Social da Igreja. Tratamos, a seguir, de destacar suas principais idéias-força. Sua referência maior, já a partir do título, do início ao fim, é a de desenvolvimento. Desenvolvimento não redutível à exclusividade da economia. Um desenvolvimento empenhado e comprometido com a causa dos humanos, portanto, um desenvolvimetno integral – do ser humano como todo e de todos os seres humanos. Desenvolvimento dos povos e nações, em especial daqueles descritos como as grandes vítimas das gigantescas desigualdades socias. Estas aparecem fortemente, já no início, quando da apresentação dos “dados do problema”. Os alarmantes índices de empobrecimento de vários povos e nações, no que tange à fome, à miséria, às doenças endêmicas, ao analfabetismo, etc., e, por outro lado, o quadro privilegiado da situação dos países centrais, em especial das velhas metrópolis, fundamentam seu apelo veemente a um desenvolvimento solidário, sob pena dos riscos de convulsões sociais: “Quem não vê os perigos, que daí resultam, de reações populares violentas, de agitações revolucionárias, e de um resvalar para ideologias totalitárias?.” (n. 11). Mais adiante, também é salientado, no que diz respeito à contribuição da Igreja, trabalho de figuras emblemáticas, a exemplo de Charles de Foucauld, pela sua inculturação junto a povos de cultura tão diversa, para o que foi muito importante atentar-se para os sinais dos tempos, adequadamente interpretados. É, com efeito, da adequada interpretação desses sinais (cf. nn. 12 e 13), que se vai percebendo a necessidade de se ter presente o caráter universal da destinação dos bens (aspecto, aliás, bem marcante, não apenas na Gaudium et Spes, como na sempre impactante tradição patrística (Basílio, Ambrósio…): “a propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém tem o direito de reservar para o seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando falta a outros o necessário.” (PP, n. 23).

Nota-se um “crescendum” ca, quanto ao sentimento de indignação na Encícleca diante das crescentes desigualdades sociais, ao ponto de advertir aos principais responsáveis por esta situação dos graves riscos de convulção social e de manifestações de caráter totalitário: “Certamente há situações, cuja injustiça brada aos céus. Quando populações inteiras, desprovidas do necessário, vivem numa dependência que lhes corta toda a iniciativa e responsabilidade, e também toda a possibilidade de formação cultural e de acesso à carreira social e política, é grande a tentação de repelir pela violência tais injúrias à dignidade humana. (PP n.30). Vale a pena obsevar a este respeito todo o cenário sócio político de crescente fermentação e agitação social reinantes em meados da década de 60, haja vista a intença mobilização dos estudantes na Europa. Bem como a situação explosiva reinante na América Latina. Percebesse, em consequência a dramaticidade do apelo para a necessidade e a urgência de profundas reformas, inclusive como meio de se evitar os perigos de manifestaçõe populares: “Só a iniciativa individual e o simples jogo da concorrência não bastam para assegurar o êxito do desenvolvimento. Não é lícito aumentar a riqueza dos ricos e o poder dos fortes, confirmando a miséria dos pobres e tornando maior a escravidão dos oprimidos. São necessários programas para “encorajar, estimular, coordenar, suprir e integrar”[35] a ação dos indivíduos e dos organismos intermediários. Pertence aos poderes públicos escolher e, mesmo impor, os objetivos a atingir, os fins a alcançar e os meios para os conseguir e é a eles que compete estimular todas as forças conjugadas nesta ação comum. Tenham porém cuidado de associar a esta obra as iniciativas privadas e os organismos intermediários. Assim, evitarão o perigo de uma coletivização integral ou de uma planificação arbitrária que, privando os homens da liberdade, poriam de parte o exercício dos direitos fundamentais da pessoa humana (PP, n 33.)

Por outro lado, as profundas reformas pre-cononizadas. Pelo Papa Paulo VI vão além da espera econômica. Devem alcançar igualmente as distintas esferas da realidade humana, inclusive a da Cultura. Aqui, pode-se observar a preocupação da Polulorum Progressio com o que aí é chamado de risco materialista característico principalmente dos países ricos, a ser evitado em sua relação com os países pobres, risco que hoje traduzimos como o do consumismo. Em conclusão da primeira parte, Paulo VI volta a insistir no caráter integral do desenvolvimento proposto: É necessário promover um humanismo total. Que vem ele a ser senão o desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens?

A segunda parte da incíclica é consagrada a sugerir pistas que permitam a superação das desigualdades sociais, atribuindo aos povos ricos a responsabilidade maior pelo empreendimento do “Desenvolvimento solidário da humanidade”. Para tanto, cuida de fundamentar suas propostas por meios de argumentos ético-políticos. Defende que tal solidariedade deve iniciar-se pelo empenho dos povos ricos, aos quais cabe maior responsabilidade pela situação de gritantes desigualdades sociais. Aponta 3 dimensões desse dever atribuído aos povos ricos: Uma que tem a ver com o dever de solidariedade; outra relativa à justiça social e a 3 referindo-se a caridade. (cf. n.44) Destas dimensões, destacamos com mais força a que expõe a grave responsabilidade dos povos ricos em reexaminarem e retificarem suas relações comerciais com os países pobres: “o do dever de justiça social, isto é, a retificação das relações comerciais defeituosas, entre povos fortes e povos fracos” (PP, n44).

Vêm, a seguir as pistas propostas como um programa de ação solidaria, o que é feito conforme as três dimensões enunciadas no número 44. De cada dimensão, oferecemos algumas ilustrações. Com relação ao dever solidariedade, cuja iniciativa maior Paulo VI atribui aos ricos, é proposto um dever de assistência aos mais deserdados, a começar por uma campanha de combate à fome, a envolver organismos oficiais, como a FAO, e outras iniciativas de organizações, a exemplo do trabalho realizado pela Cáritas Internacional, em várias partes do mundo. Trata-se de uma ação necessária, mas por certo insuficiente, para responder, à altura, aos desafios dos nossos tempos, recolhece o Papa. Com efeito, urgem medidas mais consistentes, e organizadas em escala planetária. Uma dessas medidas sugeridas é a criação de um fundo mundial destinado a socorrer os países pobres, a ser criado com a redução dos escandalosos investimentos militares, mantidos pelos países ricos, em especial as grandes potências. Trata-se de um tipo de gasto supérfluo, que, não apenas não contriubui para a paz mundial, mas ainda agrava as tensões entre os povos. Com relação a despesas supérfluas, aliás, dirigem-se as palavras de denúnica mais contundentes: “Quando tantos povos têm fome, tantos lares vivem na miséria, tantos homens permanecem mergulhados na ignorância, tantas escolas, hospitais e habitações, dignas deste nome, ficam por construir, torna-se um escândalo intolerável qualquer esbanjamento público ou privado, qualquer gasto de ostentação nacional ou pessoal, qualquer recurso exagerado aos armamentos. Sentimo-nos na obrigação de o denunciar.” (PP, n. 53).

Ao propor a criação de um fundo mundial, de combate à miséria e em vista do desenvolvimento das nações pobres, a Encíclica cuida de sugerir esforços na gestão de um tal fundo, de modo a assegurar, em bases justas, o acesso e a participação nele das nações pobres, de modo a que, de um lado, não signifique uma esmola, e, de outro, se garantam condições efeticas de participação, conforme as reais possibilidades dos que recorrerem ao mesmo fundo.

O Papa Paulo VI não perde a oportunidade de advertir contra a tendência de cometimento de graves injustiças cometidas, nas relações comerciais entre países ricos e países pobres, denunciando a truculência do império do Liberalismo, chegando a tratá-lo como uma “ditadura”: “uma economia de intercâmbio já não pode apoiar-se sobre a lei única da livre concorrência, que frequentes vezes leva à ditadura econômica. A liberdade das transações só é equitativa quando sujeita às exigências da j.” (PP, n. 59).

Nos nn. 60 e seguintes da mesma Encíclica, são postos em relevo princípios de justiça social, que devem orientar as relações econômicas entre povos e nações, com destaque para as relações comerciais. Apelo é feito aos países ricos, no sentido de respeitarem critérios de justiça e do dever de solidariedade, nas tratativas de preços justos e de garantia de produção, no que diz respeito aos países pobres.

Também, a Encíclica se volta às relações culturais, expressando suas preocupações com o racismo que pode estragar a boa convivência entre povos e nações. Eis por que enfatiza, com tanta força, a necessidade de se combater o individualismo, a falta de compromisso, inclusive, de jovens vindos de jovens nações, que, adquirindo maior capacitação profissional, em países mais avançados, são tentados, por vezes, a não perseverarem em seu compromisso com os povos e nações de onde vieram. Aí também se faz menção às aspirações nem sempre satisfeitas dos trabalhadores migrantes.

Em conclusão, a Encíclica salienta a importância do desenvolvimento integral, ao ponto de afirmar que tal desenvolvimento é “o novo nome da paz” (cf. n. 76). Para tanto, faz questão de dirigir uma palavra final a um conjunto de protagonistas-alvo do seu dramático apelo, de modo a incluir católicos, homens de boa vontade, chefes de Estado, sábios, entre outros, a quem interpela e convida a “unirem-se a vós fraternalmente. Porque, se o desenvolvimento é o novo nome da paz, quem não deseja trabalhar para ele com todas as forças? Sim, a todos convidamos nós a responder ao nosso grito de angústia, em nome do Senhor.” (PP., n. 87).

3. Na América Latina, no Brasil e em outas regiões, como se deu a recepção da Populorum Progressio?

Num mundo de impasses e dilemas tantos, resulta compreensível a enorme repercussão da publicação da Populorum Progressio, de 26 de março de 1967. Principalmente, vinda de uma instância eclesial, tratando-se mais precisamente de um documento pontifício. A longa tradição conservadora – e por vezes, reacionária – em que vivia mergulhada a Igreja Católica Romana, antes do Concílio Vaticano II, suscitara a convicção de amplos setores sociais, de que ela só deveria tratar de assuntos “espirituais”, em que pese a profunda aliança política – revestida de um manto supostamente “apolítico”. Sucede então o conhecimento de uma postura profética que rompia com o tradicional conservadorismo das forças dominantes.

A Populorum Progressio pela contundência de seu clamor, repercutiria amplamente no mundo de então, não só ao interno da Igreja Católica, mas também em diversos segmentos da sociedade civil, em várias partes do mundo. Nesse sentido, ela dá sequência ao profético clamor do Papa João XXIII, através de suas já mencionadas encíclicas. Ecoa, igualmente, os clamores de vários setores da sociedade civil, comprometidos com mudanças sociais estruturais. Aqui se destacam diversos movimentos sociais e organizações de base, em escala internacional, na América Latina, na Europa e em outros países.

Na África, por exemplo, despontam diferentes iniciativas de descolonização, tanto entre nações colonizadas pela França, por Portugal, etc. Na Europa, no Leste europeu crescia a resistência, não apenas contra o Capitalismo, mas também contra o regime Soviético, sob graves acusações das crueldades praticadas pelo regime Stalinista.

Na América Latina, ainda sob a influência da vitoriosa Revolução Cubana, expandem-se pelo continente, ações coletivas de resistência, às ditaduras militares récem-implantadas, principalmente no chamado Cone-Sul. Não se tratava de movimentos apenas anti-regime militar, mas também de luta contra o regime capitalista. É assim que, em vários países ganharam força experiências de grupos revolucionários, na Colômbia, na Bolívia, e posteriormente também no Cone-Sul. Um desses movimentos teve lugar na Argentina: o Movimento de Sarcedotes para o Terceiro Mundo, expressa inspiração na Populorum Progressio. (cf. “confira o link abaixo”)

https://www.youtube.com/watch?v=0Ks_eSiAGjQ

A Populorum Progressio potencializou notavelmente, na América Latina e no mundo, a mensagem do Concílio Vaticano II dirigida ao mundo dos pobres – ao menos de alguns de seus documentos, a exemplo da Gaudium et Spes e alguns outros, como o célebre n. 8 da Constituição Lumen Gentiium (focado no compromisso da Igreja com os pobres). Mais: trouxe novo impulso à mensagem legada, em novembro de 1965, pelos 40 bispos signatários do “Pacto das Catacumbas”. Tal a afinidade com o clamor dramático da Populorum Progressio, que uma centena de Bispos do Terceiro Mundo, após a publicação desta Encíclica, e um pouco antes do início da Conferência Episcopal Latno-America de Medellín, fez circular um denso e profético “Manfieso de Obispod del Tercer Mundo, entre cujos signatários figuravam nomes de Dom Helder Câmara (Olinda e Reicfe), Dom Antônio Batista Fragoso (Crateús – CE), Dom Francisco Austregésilo de Mesquita (Afogados da Ingazeira – PE), Dom Severino Mariano de Aguira (Pesqueira – PE), Dom Manuel Pereira (Campina Grande – PB), Dom Davi Picão (Santos – SP), além de outros bispos de várias partes do mundo (Índia, Lao, China, etc.). Note-se que vários desses bisos foram signatários originais do “Paco das Catacumbas”.

Importa, também, sublinhar a notável influência que a mesma Populorum Progressio exerceu sobre os preparativos e a realização da conferência Episcopal Latino-Americana, realizada em Medellín, na Colômbia, em 1968. Um (re)exame do Documento de Medellín pode facilmente comprovar a força profética daquela Encíclica, tanto no desenrolar daquele evento quanto em sua aplicação, nos anos seguintes.

No caso do Brasil sua repercussão se deu, de vários modos. Desde a CNBB a alguns Regionais e Dioceses, vários acontecimentos foram organizados, com o próposito de divulgar o documento pontifício.

Inlcusive, endioceses do Regional nordeste II. Até mesmo a Diocese de Pesqueira-PE tratou de estuda-la, junto a algumas comunidades rurais e das periferias urbanas, utilizando-se inclusive, de recursos audiovisuais.

4. Dramaticidade e atualidade do seu clamor

Meio século após a publicação da Populorum Progressio, eis que resta dramático nosso quadro histórico, sob tantos aspectos ali focados. Se nos encontramos, hoje, ante novos desafios, de um lado, por outro lado, não ainda não fomos capazes de responder a antigos desafios, como é o caso da fome, no mundo. Ainda hoje, os noticiários seguem pródigos na circulação de notícias, em vários países, principalmente na África, dando conta de populações inteiras subnutridas, vítimas de fome endêmica.

“Se a fome em África em 2011 matou 260 mil pessoas, a atual crise está a caminho de se tornar “muito pior”, com 20 milhões de vidas em risco.

Um relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), divulgado segunda-feira, alertava que perto de 1,4 milhões de crianças podem morrer este ano devido à fome e malnutrição em apenas quatro países: Iémen, Nigéria e Sudão do Sul, por causa da guerra, e Somália, devido à seca.”.

http://visao.sapo.pt/actualidade/mundo/2017-02-21-Fome-em-Africa-14-milhoes-de-criancas-podem-morrer-nos-proximos-meses

O analfabetismo constitui outro item revelador da dramaticidade do mundo atual:

“Mais de 700 milhões de adultos no mundo não sabem ler nem escrever. O levantamento é da Unesco, que fez uma pesquisa em mais de cem países. O Brasil está no grupo daqueles que investem menos do que deveriam. São 13 milhões de brasileiros analfabetos.”

“63% dos adultos analfabetos no mundo são mulheres, diz Unesco”

http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2017/02/mais-de-700-milhoes-de-adultos-no-mundo-sao-analfabetos-diz-unesco.html

http://brasileiros.com.br/2017/02/63-dos-adultos-analfabetos-no-mundo-sao-mulheres-diz-unesco/

Citamos apenas dados escandalosos relativos à fome e ao analfabetismo. No entanto, grande é a lista de dados semelhantes, em diversas outras esferas da realidade, tais como: os índices de desemprego, o deficit de moradia, de saneamento, os altos índices de trabalho precário, os dados relativos às chamadas “doenças da pobreza”, de migração forçada, de escolarização e tantos outros completam uma lista quase infinda, reflexo da combinação de múltiplos fatores, a denunciarem a necessidade e a urgência de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal. A despeito de avanços pontuais obtidos em vários campos científico-tecnológicos, um balanço há de revelar qual pouco conseguimos, relativamente há 50 anos atrás.

Eis por que constatamos triste atualidade na encíclica analisada, cujo clamor segue a ressoar, com força sobre nossa contemporaneidade. Nossas esperanças, ontem como hoje, voltam-se para o protagonismo daquelas forças sociais grávidas de alternatividade.

"A esquerda tem que se refazer na base", alerta Marcelo Freixo

Deputado Estadual Marcelo Freixo (PSOL) no seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Foto: Marcelo Santos Braga.

Após ganhar popularidade com o seu combate às milícias do Rio de Janeiro, o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) vem numa crescente eleitoral. Com muito menos recursos e tempo de televisão, chegou ao segundo turno nas eleições para prefeito carioca no ano passado. Derrotou o PMDB, que detém o poder no Estado há mais de uma década, mas perdeu para o bispo Marcelo Crivella (PRB).
Na entrevista, Freixo fala sobre a importância de um projeto de segurança pública calcado nos direitos humanos para o desenvolvimento da democracia e a necessidade de uma política penitenciária para o combate às facções criminosas. Critica também a concentração dos meios de comunicação, que, segundo ele, foi uma das principais pautas não enfrentadas pelo PT apesar da sua relevância para a esquerda. Novas linguagens e o retorno ao trabalho de base são as prioridades dos movimentos atualmente, apontou o deputado. A conversa ocorreu um dia antes (15/02) de o PSOL protocolar um pedido de impeachment do atual governador Luiz Fernando Pezão.
Quais os equívocos e virtudes da campanha das Eleições para prefeitura do Rio em 2016?
A dinâmica do Rio é tão grande que a gente pensa pouco sobre o que aconteceu ano passado, somos sempre atropelados por um cotidiano muito intenso. No dia seguinte da eleição já chegou o pacote do Pezão aqui (Alerj), então emendamos direto e teve pouco tempo de avaliação e reflexão pois fomos engolidos pela agenda política. Mas foi uma campanha vitoriosa, que deu para ter vitória política mesmo não tendo a vitória eleitoral. Chegamos ao segundo turno num momento muito desfavorável, pouquíssimas candidaturas com perfil de esquerda no país que chegaram ao segundo turno. A esquerda saiu derrotada não só no Rio de Janeiro. Foi uma eleição muito pulverizada tanto pela direita quanto pela esquerda, e com apenas 11 segundos de televisão. Tínhamos uma dificuldade muito concreta pela frente, e viramos em cima do PMDB na última semana após o debate na Globo. Isso já é uma vitória política, embora a gente quisesse ganhar e tenha se organizado para isso. Seria bom para o Rio de Janeiro e para a esquerda, o nosso programa de cidade era muito melhor do que o Crivella apresenta hoje independente de qualquer orientação ideológica.
“Não houve disputa no meio evangélico por uma pauta progressista”. avaliou criticamente. Foto: Marcelo Santos Braga.

Uma virtude da campanha é que nos preparamos muito, reunimos centenas de pessoas para a construção do nosso programa. Milhares de pessoas opinaram sobre a sua área, dos especialistas aos usuários dos serviços públicos. Tínhamos um programa bem completo e uma equipe inclusive com especialistas de fora da cidade com capacidade técnica e competente. Vivemos uma crise muito grande, precisamos de gente boa. Qualificamos bastante o debate no segundo turno, mas a nossa limitação é da esquerda como um todo que precisa entrar na questão religiosa. Estamos nos organizando para isso, você tem 25% da população do Rio de Janeiro que é evangélica. A esquerda, na qual estou incluído, cometeu o erro de nunca olhar para essa população e fazer um debate político sobre isso. Se você parte do princípio que todo evangélico é reacionário e de direita, você já perdeu qualquer disputa majoritária na cidade. Foi um erro que cometemos, não houve disputa no meio evangélico por uma pauta progressista. Onde está escrito que o evangélico é conservador? A orientação religiosa pode ser, mas o cara necessariamente não. Estamos tendo acesso a uma pesquisa em que nos últimos 5 anos cresceu 60% no Brasil as religiões.
As bancadas ruralistas são reflexos disso nas instâncias de poder a nível nacional…
Elas mostram de alguma maneira isso, né. Então se você somar os evangélicos com os seguidores de Bolsonaro e outros, acaba com qualquer disputa e foi o peso que a gente teve na eleição de segundo turno. Na avaliação dos equívocos fica uma grande lição, que é disputar espaços fora das nossas bolhas e dos espaços tradicionais.
Vocês há muito tempo denunciam as falcatruas do PMDB e finalmente o Cabral foi preso e o Pezão w sua chapa estão com sua última eleição cassada pela justiça. Mas mesmo assim o Picciani foi reeleito pela sexta vez na presidência da Alerj e eles têm maioria com 14 dos 70 deputados na casa. O que muda, de fato?
Não é uma derrota qualquer na cidade do Rio, e demonstra um pouco a fragilidade deles. A prisão do Cabral atinge diretamente sua principal liderança política, e o Picciani e outras lideranças podem a qualquer momento passar por isso também. O PMDB do Rio tem uma chance de desmoronar dependendo das investigações, daí concluimos que um grupo muito criminoso tomou de assalto o poder no Rio de Janeiro. O modus operandi do governo, seu funcionamento, era criminoso. Qual a principal acusação ao Cabral? Formação de quadrilha, que era o governo. Ele não está sendo preso porque além de governador tinha uma formação de quadrilha traficando armas escondidas do Sudão, e sim por conta das suas decisões enquanto governador favorecendo redes de empreiteiras e determinadas atividades econômicas. Tendo benefícios de campanha, propina, aí envolve Tribunal de Contas, Ministério Público, poder judiciário e as demais teias dessa estrutura de poder corrupta. É muito sério, porque são dez anos.
“O Estado do Rio hoje está falindo porque tem uma relação direta com esse modus operandi de governar”, criticou. Foto: Marcelo Santos Braga.

A gestão do Cabral coincide com a minha entrada na vida pública, me elejo deputado quando ele se elege governador. Então acompanhei todo esse procedimento deles, e o Estado do Rio hoje está falindo porque tem uma relação direta com esse modus operandi de governar. São os empréstimos, os endividamentos, uma relação nefasta entre o público e o privado atendendo a interesses privados e não aos públicos.
A cabeça está sendo presa, mas a engrenagem se mantém no funcionamento da máquina. Tanto é que a Alerj está votando às pautas cercada de polícia e volta e meia tem bomba afastando a população.
Antes eles votavam de porta aberta, sinal que não é a mesma coisa. Quando o Piccini teve minoria aqui? Nunca. Ele foi reeleito pela sua base governamental, não é a sua relação com a sociedade. A base de deputados elegeu ele, e só o PSOL e um deputado da REDE votaram contra. Inclusive o PT votou nele.
Você tem batido na tecla da CPI das Isenções Fiscais há algum tempo, além da questão da UERJ e CEDAE, que em função desses estouros e a crise veio à tona.
A CPI deve ser implementada depois do carnaval. Temos uma crise econômica grande, que é de receita e não de despesa. O Estado não entrou em crise porque gastou muito, ele deixou de arrecadar. O governo diz que deixa de arrecadar em função da queda do barril de petróleo, mas o que dizemos é que existe uma queda do barril com um impacto significativo da crise petrolífera mas há também uma queda de receita por parte de benefícios fiscais irresponsáveis, da não cobrança da dívida ativa. O pagamento indevido de uma dívida com o Governo Federal, esse tipo de avaliação dessa dívida e os empréstimos. Há uma má gestão também, são empréstimos sucessivos que o governo Cabral e Pezão pegam e pelo menos três deles em dólar. Então, se o câmbio explode a economia do Rio explode também.
Foram anos de uma gestão do PMDB temerária e irresponsável para além da estrutura corrupta, um modelo de desenvolvimento que gerou uma crise financeira aguda. Isso precisa ir para conta do PMDB e agora eles querem solucionar essa crise cortando despesa, e não continuam resolvendo o problema da receita. Fecham restaurante popular, dizem que não vai ter mais concurso público, aumentam a taxa previdenciária do servidor em mais 8%, etc. Onde vão diminuir a despesa e aumentar a receita? No servidor e na população mais pobre para continuar governando para quem sempre governaram. Quando falamos que precisa de uma CPI das Isenções Fiscais é porque se há uma crise de receita, é por que o Estado deixou de cobrar impostos de grandes empresas que não necessariamente trouxeram algum benefício. Não sou contra as isenções fiscais, desde que elas tragam desenvolvimento econômico e geração de emprego. Se você trouxer uma empresa que vai gerar milhares de empregos numa região onde não tem, beleza, benefício fiscal. Mas trazer uma empresa para dar R$ 380 milhões de benefício fiscal, que ela deixa de pagar vários impostos, e ela gera 400 empregos não dá. Ah, mas se não der o beneficio ela não vai se instalar, dizem. Vamos ver, será? Mas o importante é: o que estamos ganhando com esse benefício em cada um desses setores? Segundo o cálculo do Tribunal de Contas, são R$ 150 bilhões que o estado do Rio deixou de arrecadar com a política de isenção fiscal dos últimos anos.
Na porta do gabinete do deputado estão diversos adesivos de movimentos sociais, e ao fundo na parede da sala um quadro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Foto: Marcelo Santos Braga.

Empresas que devem ao governo foram beneficiadas com isenções com valores superiores aos definidos, tipo Coca Cola, Pepsi, etc, todas multinacionais, que são financiadoras de campanha do Pezão. Quer dizer, a empresa recebe isenção e depois financia. A gente entrou com uma ação de improbidade administrativa contra ele. Aliás, a ação que ganhamos de 2014 no TRE por 3 votos a 2 consegue a liminar com a cassação da chapa. Ele está recorrendo no TSE por uma razão simples: tinha empresas, que são grandes, ganhando aditivos nos seus contratos (ou seja, você faz um contrato de R$ 3 bilhões e ganha R$ 700 milhões de aditivo, por exemplo). E ao ganharem esse aditivo uma semana depois viraram doadores de campanha do PMDB. Isso deixa muito claro esse abuso de poder econômico, empresas contratadas para prestar serviços ao governo prestavam serviço à campanha como gráficas, por exemplo.
Vivemos uma conjuntura muito delicada com um impasse em que até que ponto a esquerda apóia ou não o PT, na medida em que qual o limite da sua responsabilidade nesse processo? Como está essa dinâmica na esquerda daqui para frente?
Esse é um momento importantíssimo, o PT tem uma responsabilidade muito grande da crise da esquerda. É óbvio, era o grande partido que estava no governo federal e a gente não titubeou em relação à questão do golpe. Desde o momento inicial fui para todos os palanques denunciar o golpe e apoiar a democracia. Apoiei a Dilma no segundo turno mesmo discordando profundamente do seu governo. Fiz um apoio crítico, sempre separei as duas coisas, mas o PT tem grande responsabilidade sobre a crise ética da esquerda. Tem uma enorme responsabilidade sobre a imagem do desgaste da esquerda.
O PSOL tem uma possibilidade muito grande, não é necessariamente uma realidade. O PSOL no Rio é muito mais forte que o nacional, por exemplo. Mas tem a possibilidade de construir uma alternativa de esquerda nacional, não acho que o PT consiga mais uma vez. Não é isso o que vejo das bancadas, então cabe ao PSOL construir esse projeto que ainda não tem. Isso não se dá só com candidatura, se dá também com trabalho de base. Acho que a esquerda e não só o partido, mais que fazer trabalho de base tem que se refazer na base.
“O PT tem uma responsabilidade muito grande da crise da esquerda”, criticou. Foto: Marcelo Santos Braga.

Quando você diz refazer remete à juventude, que tem desenvolvido outras formas de militância que não necessariamente passam pelos partidos, sindicatos, etc…
A juventude é fundamental para a renovação, mas não só. Acho que você tem que reinventar mesmo as linguagens. Hoje vivemos num mundo com outra linguagem, que é diferente da década de 80 e 90. A comunicação tem um nível de velocidade e espaços que não são os mesmos onde se fazia política nas décadas de 80 e 90. Não adianta você ficar naquele tempo não entendendo o que está acontecendo hoje, e 2013 deveria ter servido para nos alertar disso. Porque as convocações não passam mais pelo mundo organizativo da política.
Fomos todos pegos de surpresa e ninguém conseguiu interpretar o fenômeno à época.
Demoramos a entender, aí é mais fácil dizer que é a bandeira da direita quando na verdade não é tão simples. As bandeiras tinham setores da esquerda, progressistas, e aí a gente deixa de disputar esses setores? Acho que não, e esse trabalho tem que começar esse ano. Fui a Belo Horizonte, Florianópolis, Salvador, vou a Belém, tenho ido a alguns lugares, e como meu nome nacionalizou muito por causa da campanha do segundo turno minha ideia é contribuir nesse debate de um projeto nacional de esquerda pelo PSOL com as bancadas de vereadores e deputados. Aproximar a gente da sociedade. A esquerda nasce com o trabalho de base, e precisamos retomar. Fui de base muito tempo, e temos um processo de distanciamento muito grande da base ao longo dos últimos anos no governo do PT. Qualquer projeto de esquerda nacional tem que se refazer na base, que é resgatar a formação de militantes, o trabalho social de base, que não necessariamente é do sindicato mas é também. É o trabalho da luta pela terra, as agendas que são diferentes, como a contra a homofobia e o debate da mulher que não faziam parte das décadas anteriores.
Por outro lado há um discurso raivoso e até de ódio com algumas pautas. E o Bolsonaro, gostando ou não do que ele representa, foi o mais votado em 2014 aqui no Rio e tem um eleitorado enorme nacionalmente.
Mas é aí que se dá a luta de classes, a disputa política e de narrativa e representatividade. A disputa política passa por narrativas e representatividades, o problema é que a esquerda precisa aprender é que ela não se identifica naturalmente com alguma coisa. Hoje ser de esquerda é necessariamente ser ético? Não é mais essa a leitura que a sociedade tem. Isso precisa ser reconstruído. Quando você fala de esquerda, naturalmente se associa a determinado programa de governo? Não, isso precisa ser refeito. Antigamente você falava de esquerda e já pensava na reforma agrária, e hoje não. Precisamos entender melhor o que vai significar pensar pela esquerda com uma sociedade com essa complexidade.
“Não ter política penitenciária é a política penitenciária”, afirmou o deputado. Foto: Marcelo Santos Braga.

Você tem vasta experiência na segurança pública, e teve recentemente várias rebeliões simultâneas nos presídios e agora greves de policiais que, inclusive, estão com possibilidade de ocorrer no Rio. Como tem enxergado esse processo?
A crise da segurança é sempre a crise republicana mais aguda, porque mexe no medo que é combustível de intolerância. E a direita se apropria da intolerância, enfrentar os medos é decisivo para qualquer projeto de esquerda. O [Zygmunt] Bauman falava quanto o papel do medo é pedagógico na consolidação de um poder hoje. Esse medo líquido que a pessoa tem mas não sabe bem do que, mas sabe a cor e de onde ele vem. Essa lógica do medo materializa os matáveis, então a segurança pública é sempre um ponto mais agudo de qualquer crise republicana. É preciso consolidar uma política de segurança pública calcada nos direitos humanos, o que se consolidou recentemente no Brasil é que direitos humanos é uma coisa e segurança outra. Essa polarização é muito destruidora de qualquer processo democrático, não haverá democracia sem um projeto de segurança. Até porque um processo de democracia sem segurança ameaça a ideia de liberdade, que é tão sagrada na democracia. Como conciliar segurança e liberdade? Para eu me sentir um pouco mais seguro eu perco um pouco da minha liberdade, eu quero mais liberdade mas não quero me sentir inseguro: esse é o grande desafio nesse mundo de hoje.
O que eu mais respondi nessa minha campanha é que por eu ser defensor de direitos humanos era defensor de bandido, e todas as pessoas relacionadas ao tema de certa forma respondem a isso. Está consolidada a idéia, como se você tivesse responsabilidade sobre a violência e naturalmente fosse contra as polícias. Defender os direitos humanos é defender uma polícia preparada para a democracia, que respeite a lei, não aceite tortura como instrumento de investigação nem o linchamento e a barbárie. Por que isso é contra a polícia e a democracia? Por que isso é contra a sua ideia de liberdade? Isso é um desafio que não cabe aos militantes de direitos humanos, cabe a todos que acham que a democracia é fundamental.
Nesse sentido, o que está acontecendo nos presídios é a tradução de um modelo que não está dando certo e tende ao fracasso?
Aí entram vários questionamentos: os presídios hoje dão certo? São bons ou ruins? O maior crescimento de taxa de população carcerária do planeta é o nosso, e ao mesmo tem sua população vai às ruas pedir penas maiores e prisões mais severas. E as pessoas estão morrendo nas prisões, o que está acontecendo? Onde mora esse divórcio todo? Não ter política penitenciária é a política penitenciária, por isso você vê claramente o crescimento das facções. Elas não nascem nas ruas no Brasil, ao contrário de outros lugares no mundo, e sim nas prisões. Por que todas as facções nascem das prisões? Porque nascem e se alimentam da ausência de políticas públicas no confinamento de pobres, de quem sobrou da sociedade. E numa justiça criminal que tem absolutamente um processo seletivo de classes.
“As facções nascem e se alimentam da ausência de políticas públicas no confinamento de pobres, de quem sobrou da sociedade”, disse. Foto: Marcelo Santos Braga.

A gente falou muito de narrativa e linguagem, acho que tudo passa pela questão da comunicação também, sobretudo a política. Até que ponto a mídia influi nisso tudo?
Influi muito, vamos pegar um exemplo sobre o que eu acabei de falar. Tivemos aquele episódio na Cidade de Deus, que caiu um helicóptero no ano passado por um defeito técnico. Mas de imediato a polícia entra na comunidade e mata vários, e no dia seguinte todas as reportagens, sem exceção de nenhum veículo, faz a seguinte pergunta: quem morreu tinha passagem pelo tráfico ou não? Por que essa pergunta é feita? Não é preconceito não, é porque se torna matável. Não era você [repórter, branco de classe média] que tinha morrido, porque se fosse ninguém perguntaria se tinha passagem pela polícia. Você não pode morrer numa situação dessa, não é um matável mesmo que tivesse passagem pela polícia. Se você for morto pelo Estado causa estranheza, e o papel da imprensa é muito decisivo quando cria claramente a figura do matável. Chegam ao delegado e fazem essa pergunta, e ao responder o que menos importa é a resposta. A pergunta já classifica aquele como outro: esse aqui era pra ter morrido e eu não. Isso não depende da lei, não tem relação com o Estado democrático de direito, tem a ver com a narrativa. Cria os matáveis mesmo que as circunstâncias da morte nada tenham a ver com qualquer possibilidade de confronto. Não havia uma ideia com uma cobrança de vingança, que não cabe ao estado agir dessa maneira. Eles poderiam ser ou não traficantes, mas não era esse o debate. A questão era sobre retaliação.
E ficou constatado que houve um erro técnico na aeronave no final das contas…
Mesmo assim, não era a questão. Então a esquerda precisa fazer esse debate mais aprofundado sobre a relação com a produção da informação. Não à toa que um dos grandes problemas foi o PT não ter dado a devida importância às conferências de comunicação. Ocorreram as municipais, estaduais e a nacional com várias propostas que não foram aproveitadas. E por que foi a última? Talvez seja um ponto delicado.
Uma das primeiras medidas do Temer na presidência interina foi mexer na EBC (Empresa Brasil de Comunicação).
Pois é. As conferências todas apontam um caminho, e por que isso não foi cumprido? Por que não se tem a coragem de mexer nisso?
“Os projetos de cidade hoje passam pelos interesses financeiros e econômicos das empresas de comunicação”, concluiu Freixo. Foto: Marcelo Santos Braga.

Você acha que a mídia tem partido?
Ou é um, não? Ela não é apropriada por um partido, ela se apropria. Tem os seus interesses econômicos e políticos. Os projetos de cidade hoje passam pelos interesses financeiros e econômicos das empresas de comunicação. As empresas hoje não discutem a informação, discutem a economia e investimentos na cidade. Está em outro patamar, administram museus, realizam convênios, dentre outras negócios.
E a Lava Jato: até que ponto vai e qual sua avaliação sobre onde ela chegou até agora?
É muito difícil prever aonde ela vai parar, porque toda a intenção do governo ficou na fala do Romero Jucá (PMDB) de fazer com que a Lava Jato tenha sido um instrumento para tirar o governo do PT. E que ela possa ser paralisada, mas não conseguiram tanto é que chegou ao PMDB. No caso do Rio de Janeiro o PMDB está sendo destroçado pela operação, mas vai chegar ao PSDB? Ou ali haverá obstáculos? Porque sem dúvida alguma pode chegar.
O Alckmin, Aécio e Serra estão nas delações.
Já chegou, na verdade, ninguém tem dúvida. Vai para frente ou não? Aí é o tempo que vai dar coerência ou não.
Muita gente tem falado, inclusive vários meios da esquerda, que o Moro é um agente do imperialismo e a Lava Jato só serviu para tirar o PT.
Acho que há exageros também. Mas a personificação heróica de qualquer figura pública do judiciário é perigosa, seja a do Moro ou qualquer outra. Isso é muito ruim para a democracia. O Brecht tem uma frase muito boa: infeliz o povo que precisa de heróis. Acho que a fragilidade institucional e a construção dos heróis não são bons para a democracia em nenhuma hipótese, então costumo brincar dizendo que o STF ultimamente se tornou um poder moderador. A primeira constituição brasileira é de 1824, na qual as mulheres não votavam e o voto era censitário, dois anos depois do Império. Essa constituição criava um quarto poder, que era o moderador exercido pelo imperador. Hoje o poder moderador é o STF, é um ultra poder que está sobre os outros: é o executivo, legislativo e judiciário. Esse é um problema maior que a personificação do Moro ou de um governo ou outro: é na estrutura de poder que o judiciário acaba assumindo esse papel. Para você ter golpe hoje não precisa de tanque na rua nem um governo de esquerda.
Mas hoje pra entrar na Alerj tinha força nacional aqui na porta e um monte de gente armada, nunca tinha visto isso.
Pra você ver, nem eu que estou aqui há dez anos. Isso é sinal de um desmonte.

Nas eleições da França, é vai ou racha

Por Antonio Luiz M. C. Costa, da CartaCapital

O fascismo mal disfarçado de Le Pen e seu guarda-costas brucutu encontraram um rival à altura

Do Chile à Coreia do Sul, muitas eleições relevantes acontecerão em 2017. Só na Europa serão oito, sem contar as regionais e municipais. De todas, a eleição presidencial francesa, cujos dois turnos serão em 23 de abril e 7 de maio (seguida em 11 e 18 de junho pelas eleições parlamentares), é a mais capaz de abalar o mundo.
Em setembro, a Alemanha também vai às urnas, é economicamente mais poderosa e a eleição de Angela Merkel e sua frente conservadora para um quarto mandato não pode mais ser dada como certa. Na segunda-feira 6, uma pesquisa pôs à frente, pela primeira vez, o Partido Social-Democrata, liderado por Martin Schulz, ex-presidente do Europarlamento.
Essa seria, porém, uma alternância de poder dentro das regras usuais do Pós-Guerra. Pode mudar algumas políticas sociais e econômicas e influenciar os rumos do continente, mas dentro dos limites usuais. A ultradireita xenófoba da AfD deve se confirmar como terceiro partido, mas não parece ter chances, ao menos desta feita, de participar de uma aliança governamental.
É diferente o caso da França, onde a ultradireita tem possibilidade real de conquistar a chefia de um Estado quase presidencialista. Isso provavelmente significaria um Frexit e o colapso da União Europeia. Já abalada pelo Brexit e pela crise grega em vias de recrudescimento, não teria como absorver a perda do segundo país mais central a seu projeto e drásticas consequências financeiras e geopolíticas se fariam sentir em todo o mundo antes do fim do ano.
Sua derrota, por outro lado, permitiria ao sucessor de François Hollande e aos demais líderes europeus ganhar tempo para enfrentar os problemas crescentes da organização. Se eles têm alguma ideia sobre como aproveitar essa oportunidade é outra questão.
Marine Le Pen é a favorita para vencer o primeiro turno e, ao contrário do pai, Jean-Marie, em 2002, tem possibilidades de ampliar significativamente sua votação no segundo turno. As raízes fascistas de sua família são notórias. O pai recebeu regularmente colaboracionistas de Vichy e ex-oficiais da SS e insiste em considerar o Holocausto um deslize menor, se tanto.
Macron, o novo favorito do populismo liberal (Foto: Jean-Philippe Ksiazek/AFP)

A filha é mais discreta, mas é opositora feroz do euro e da imigração e seu verniz de civilização é tênue. Na quinta-feira 2, durante uma visita a uma feira de empreendedorismo, o jornalista Paul Larrouturou tentou perguntar à candidata sobre a cobrança pelo secretário-geral do Europarlamento de 300 mil euros por sua contratação irregular de auxiliares pessoais e da Frente Nacional como funcionários fantasmas da instituição. Um dos denunciados, o guarda-costas brucutu Thierry Légier, arrastou o repórter pelo colarinho para fora da sala de exposição.
O candidato da centro-direita, François Fillon, não pôde recorrer ao mesmo argumento ao ser acusado de desviar 900 mil do Parlamento francês, destinados à esposa Penelope e filhos, por serviços jamais prestados. Depois de esbravejar contra os jornalistas e falar de “conspiração” e “golpe de Estado”, acabou por admitir a verdade, mas alegou ser essa uma prática legal e comum e recusou abrir mão da candidatura presidencial.
Talvez funcionasse em outro momento, mas a paciência dos eleitores franceses para tais abusos foi desgastada por dez anos de austeridade e Fillon fez demasiado alarde da suposta integridade para se diferenciar da corrupção hoje notória do ex-presidente Nicolas Sarkozy e outros colegas de partido. Caiu nas pesquisas e deixou de ser o favorito para disputar o segundo turno com Le Pen.
Para quem a quer longe do Eliseu, isso foi providencial. Fillon venceu as primárias do partido Republicanos com um discurso de conservadorismo moral e neoliberalismo intransigente, mas essa mensagem é impopular fora das hostes da direita. Seus partidários esperavam ver os eleitores de centro e esquerda se sentirem obrigados a apoiá-lo, de boa ou má vontade, para evitar a vitória do fascismo.
As pesquisas para o segundo turno de fato o mostram capaz de vencer Le Pen por 56% a 44%, mas isso se confirmaria na realidade? Ante um segundo turno com um Thatcher de calças, Le Pen enfatizaria seu lado populista, ao menos no que se refere aos brancos nativos. Muitos desses acabariam por apoiá-la ou se abster para proteger seus direitos sociais e leis trabalhistas. Some-se a isso o risco de um atentado fundamentalista voltar a despertar as paixões xenófobas na França.
Com a queda de Fillon, o segundo lugar passou a ser de Emmanuel Macron, que deixou o Partido Socialista Francês em 2009 e foi ministro da Economia supostamente técnico e apartidário do governo Hollande de agosto de 2014 a agosto de 2016, quando renunciou para fundar o partido “Em Marcha!” e candidatar-se à Presidência.
Por mais que a mídia insista em tratar “populismo” como sinônimo de “radical” ou “iliberal”, Macron é um populista liberal, capaz de falar às massas por cima de ideologias e partidos. Assim como Alain Juppé, o pré-candidato derrotado por Fillon nas primárias conservadoras, Macron é favorável a reformas liberais com a manutenção de um grau razoável de bem-estar social, bem como a avanços como o direito ao aborto e ao casamento igualitário, atacados por Fillon.
Sarkozy chamou Macron de “um pouco homem, um pouco mulher, a moda do momento, andrógino” e fez circular um boato sobre um suposto caso homossexual do candidato, casado, com Mathieu Gallet, presidente da estatal Radio France, mas é duvidoso se isso teria grande impacto mesmo se a fonte fosse mais crível.
Hamon (foto) e Mélenchon são ideologicamente bem próximos. Unidos, chegariam ao segundo turno (Foto: Patrick Kovarik/AFP)

Se não chega a ser a continuidade do governo Hollande, Macron é mais palatável ao centro-esquerda, significaria a continuação do atual social-liberalismo envergonhado com menos vergonha e mais coerência e apresenta uma margem confortável sobre Le Pen nas pesquisas para segundo turno, perto de 65% a 35%.
Resta-lhe um possível obstáculo. As pesquisas publicadas em 7 e 8 de fevereiro indicam 25% a 26% para Le Pen, 21% a 23,5% para Macron, 17% a 20% para Fillon, 14,5% a 15,5% para o socialista Benoît Hamon e 10,5% a 13,5% para Jean-Luc Mélenchon, da Frente de Esquerda, aliança de dissidentes socialistas com o Partido Comunista.
Hamon é um ex-ministro da Educação que saiu do governo Hollande em agosto de 2014 em protesto contra a virada liberal associada à nomeação de Macron. Tem como bandeira uma renda mínima de cidadania de 750 euros mensais, representa a ala esquerda do partido e venceu inesperadamente Manuel Valls, ex-primeiro-ministro de Hollande que, consciente da impopularidade, não se atreveu a tentar a reeleição.
A ala centrista aceitou mal o resultado e tende a cruzar os braços ou apoiar Macron, mas ainda assim Hamon tem perto do dobro dos 7% a 9% de intenções de voto em Hollande antes da desistência oficial e bem mais do que os 10% a 12% de Valls quando era considerado o provável candidato socialista.
Suas posições não são tão distantes daquelas de Mélenchon e, somadas, as duas forças de esquerda estariam no segundo turno no lugar de Macron. A aliança, embora lógica, está longe de ser certa. Mélenchon quer de Hamon uma ruptura clara com o governo Hollande e o afastamento de figuras destacadas da corrente de centro, o que Hamon não parece disposto a conceder.
É mais um exemplo da tendência à autodestruição das esquerdas europeias, incapazes de aderir a uma estratégia comum em relação aos problemas do continente. Tanto os centro-esquerdas tradicionais quanto as novas forças têm dificuldades para explicar o que pretendem.
O Podemos, após ter saído do nada para a condição de segundo partido espanhol em intenção de votos em menos de três anos, pode se despedaçar em seu segundo congresso, a ser realizado em 11 e 12 de fevereiro. Íñigo Errejón, segundo nome do partido, prega uma agenda mais moderada e inclusiva com a qual tenta eleger seguidores para a direção e dividir o comando com o atual líder Pablo Iglesias.
O conservador Filon, ex-favorito, deu-se mal ao alardear moralidade cristã enquanto empregava a esposa como funcionária fantasma (Foto: Yohan Bonnet/AFP)

Este ameaça voltar para casa se não puder continuar a decidir os caminhos do partido com sua equipe de confiança, enquanto uma terceira corrente ainda mais à esquerda e menos personalista, “Os Anticapitalistas”, corre por fora.
No poder, o Syriza grego não conseguiu ser coerente com seu discurso radical. Alexis Tsipras capitulou ante a Troika e implodiu seu partido, que dificilmente voltará a ganhar uma eleição. Yannis Varoufakis, segundo nome mais conhecido do seu governo, deixou a política grega para fundar um movimento de reforma da União Europeia, enquanto Zoe Konstantopoulou, ex-presidenta do Parlamento, fundou um novo partido, o “Rumo da Liberdade”.
Com seus princípios humanistas, solidários e pacifistas contraditos pela estrutura antidemocrática e pela ditadura austeritária das elites financeiras, a União Europeia cria para seus progressistas um dilema análogo ao dos críticos de esquerda da União Soviética, igualmente condenados a defendê-la em teoria, mas combatê-la na prática realmente existente.
É uma mensagem pouco compreensível para as massas e talvez para os próprios militantes. Enquadrar Bruxelas e Frankfurt e reformar profundamente as instituições europeias exigiria unificar e mobilizar a vontade popular em escala europeia, apesar das xenofobias, das desconfianças mútuas e do descrédito alimentados pela longa austeridade.
Se houver um caminho para isso, passa pela coincidência de governos de esquerda, ou pelo menos de um centro-esquerda decidido, na França e Alemanha, talvez também Espanha e Itália. Se qualquer desses países cair nas mãos da direita nacionalista, os dias do Tratado de Maastricht estarão contados.

Equador: nem tudo é retrocesso na América Latina

Lenín Moreno (atrás Rafael Correa) e Guillermo Lasso: conclusão do escrutínio vai dizer se haverá segundo turno (Foto: AFP/Página/12)

Depois do golpe no Brasil, da derrota eleitoral na Argentina e de outros estragos sofridos pelos governos considerados progressistas na região, as forças à esquerda ganham certo alento com a tripla vitória do presidente Rafael Correa.
De Salvador-Bahia – A reeleição apertada de Dilma Rousseff em 2014 e o golpe midiático-parlamentar-judicial de 2016 no “gigante” Brasil pareceram consolidar o ‘direita volver’ na América Latina.
Isto depois duma década – a primeira do século 21 – de ascensão de governos progressistas e aplicação de políticas de inclusão social, a partir da eleição de Hugo Chávez na Venezuela em 1998.
Consolidar porque os processos liderados por forças à esquerda (ou de centro-esquerda, talvez um enquadramento mais adequado), vinham sendo seguidamente golpeados:
Os presidentes de Honduras e Paraguai foram derrubados através de golpe de Estado da nova modalidade em vigor, chamado “brando” ou “suave”. Não mais “militar”, como nos anos 1960/1970, mas orquestrado através dos conglomerados da comunicação de massa, do Parlamento e do Poder Judiciário, como veio a ocorrer no Brasil.
Na Argentina, o neoliberalismo voltou com Mauricio Macri, eleito democraticamente; na Venezuela, os anti-bolivarianos fizeram maioria, também em eleições democráticas, na Assembleia (Congresso) Nacional.
No Peru, o presidente que tinha sido eleito com programa supostamente progressista (Ollanta Humala) chegou tão desgastado à eleição que nem sequer manifestou apoio a um candidato para sua sucessão.
Até na Bolívia, onde o governo exibe bons índices econômicos em meio ao agravamento da crise geral do capitalismo, Evo Morales teve que amargar uma derrota num referendo que autorizaria uma nova disputa para nova reeleição.
Mas nas eleições gerais do domingo, dia 19, no Equador, os chamados progressistas respiraram mais aliviados: nem tudo na região parece ser “restauração conservadora”.
Tripla vitória: Presidência, Congresso e plebiscito
Vamos computar as dificuldades gerais do ponto de vista das esquerdas: crise econômica e domínio do rentismo, com a ação concertada – sob supervisão do império estadunidense – da mídia hegemônica (CNN, Rede Globo, Grupo Clarín na Argentina, Televisa no México, Globovisión na Venezuela e caterva do terrorismo midiático), e, na maioria dos casos, do parlamento e da Justiça/Ministério Público.
No caso específico do Equador, vamos acrescentar: redução drástica no preço do petróleo (responsável por um terço das exportações) e os prejuízos causados pelo forte terremoto do ano passado.
A despeito disso, o partido governista Aliança País, liderado pelo presidente Rafael Correa, venceu a disputa presidencial: Lenín Moreno, ex-vice-presidente de Correa, chega a 39,11% dos votos válidos, com 89% dos votos contados; o segundo colocado, o banqueiro Guillermo Lasso, chega a 28,34%.
O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) marcou nesta segunda-feira, dia 20, o prazo de mais três dias para chegar aos 100% da contagem. Como a diferença percentual entre Moreno e Lasso vem paulatinamente aumentando, há ainda possibilidade do governista ganhar neste primeiro turno.
Para isso, ele precisa atingir os 40% dos votos válidos, já que a outra condição Moreno já conseguiu: tem mais de 10% sobre Lasso. (Uma outra condição, já descartada, seria obter 50% mais um dos votos, conforme reza a Constituição). Se não atingir os 40%, haverá um segundo turno em 2 de abril.
Além disso, a Aliança País deve fazer maioria absoluta na Assembleia (Congresso) Nacional. Rafael Correa prevê a eleição de 75 deputados dentre um total de 137.
Terceira vitória: um plebiscito inserido nestas eleições gerais equatorianas deve ter também desfecho favorável aos partidários da chamada Revolução Cidadã: conforme números que vêm sendo divulgados, a maioria aprova a proposta do governo de proibir que autoridades tenham dinheiro em paraísos fiscais. “Essa é a verdadeira luta contra a corrupção”, disse Correa.

Lições do “Atletiba” contra o monopólio da Globo

Os dois maiores clubes do Paraná, Atlético e Coritiba, negaram-se a obedecer a regra da Globo. Foto: CartaCapital

Por André Pasti*, via CartaCapital
O clássico de domingo 19 entre Atlético-PR e Coritiba (o “Atletiba”) entrará para a história como um capítulo na luta contra o monopólio da Globo no futebol brasileiro. Os clubes negaram o péssimo acordo financeiro proposto pela emissora para transmitir a partida e decidiram exibir o jogo em seus canais no Youtube e Facebook.
Com a torcida nas arquibancadas e os jogadores prontos para o jogo, o inacreditável aconteceu: a Federação Paranaense de Futebol, a pedido da Rede Globo, impediu a transmissão da partida online. Só haveria jogo sem transmissão, em recado da Globo aos clubes “rebeldes”. Como os clubes não recuaram, a federação impediu a partida de acontecer.
Acostumada a mandar no futebol nacional, a Globo não contava com a coragem das equipes. Com a ação, elas deram visibilidade aos prejuízos do monopólio da emissora ao esporte. Como discutimos há algumas semanas, os danos do monopólio de transmissões são muitos.
Desde o horário das partidas às dez da noite, péssimo para os torcedores trabalhadores e para os próprios jogadores, a campeonatos estaduais inteiros “escondidos” das torcidas. Do financiamento extremamente desigual dos direitos de imagem dos clubes, que inviabiliza o crescimento das equipes menores, à invisibilização do futebol feminino.
A frase “quem paga a banda, escolhe a música” tem sido usada há tempos pelos comentaristas submissos à Globo para justificar esses absurdos das decisões do monopólio. Nesse “Atletiba” ficou muito claro o quanto essa lógica é prejudicial a todos os envolvidos no esporte: não importavam os direitos dos jogadores, dos clubes, nem dos torcedores presentes na Arena da Baixada; não importava o futebol – só o interesse da emissora estava valendo.
Muitos torcedores brasileiros têm questionado o monopólio midiático no futebol, com campanhas como a “Jogo dez da noite, NÃO!”, que chegou a diversos estádios pelo País. No ano passado, a “Gaviões da Fiel” protestou com faixas “Rede Globo, o Corinthians não é seu quintal” e “Jogo às 22h também merece punição”. A novidade agora é o enfrentamento do monopólio pelos próprios clubes.
Combater o monopólio da mídia no futebol é possível, como comprova a experiência argentina. Lá, o programa “Futebol para Todos” e a regulação democrática da comunicação audiovisual (a famosa “Lei de Meios”) reconheceram o direito à audiência dos eventos esportivos pela população e o futebol como patrimônio cultural nacional.
As transmissões passaram a ser realizadas em diversos canais e horários, incluindo a televisão pública, com transmissões online gratuitas em alta qualidade. Além disso, as cotas de TV foram redistribuídas, melhorando a competitividade do campeonato nacional. Infelizmente, esses avanços estão sendo agora atacados pelo governo neoliberal de Maurício Macri.
Pode a internet abalar o poder da Globo?
Os clubes propuseram como alternativa à transmissão televisiva a exibição por suas contas nas plataformas Youtube e Facebook. Mas, se a intenção é fazer frente ao monopólio da Globo, é importante apontar alguns limites dessa transmissão online.
Em primeiro lugar, há uma disparidade de acesso: apenas metade (51%) das residências brasileiras possuem acesso à internet, segundo a pesquisa TIC Domicílios 2015/CGI. Entre os usuários de internet, 31% não possuem acesso à banda larga. A mesma pesquisa revela que 97% dos domicílios brasileiros possuem televisão – com acesso a canais abertos.
Portanto, ainda é muito desigual no Brasil o alcance e o acesso possibilitado pela televisão aberta e pela internet. Essa desigualdade de acesso também se reflete entre as regiões do território brasileiro e nas distintas condições presentes nas cidades.
Outro limite está dado pelas plataformas escolhidas. Youtube e Facebook estão longe de ser plataformas livres. Pertencem a grandes empresas estadunidenses que estão concentrando a produção e circulação de informações nas redes.
Eles são novos “porteiros” digitais, decidindo o que desejam censurar, o que nós podemos visualizar, quais informações terão ou não destaque. Transferir a concentração do controle da informação dos conglomerados da radiodifusão para os conglomerados de internet seria apenas mudar os donos do monopólio.
É preciso pensar políticas que democratizem efetivamente a comunicação, considerando a realidade do território brasileiro. Vale lembrar que a televisão aberta – caso da Globo – é uma concessão pública, que deve atender ao interesse público e cumprir regras previstas em nossa Constituição.
Para além do futebol
A Globo segue agindo como a péssima “dona da bola” do futebol de rua**. A emissora mandou seu recado: ninguém poderia contrariar uma decisão do monopólio. Desta vez, no entanto, os clubes enfrentaram o canal e deram um exemplo de que é possível dizer não e lutar contra os danos do monopólio ao futebol nacional.
Aos que começaram a perceber os prejuízos do monopólio da Globo ao futebol, é preciso, também, fazer um alerta: os danos de uma mídia monopolizada vão muito além do esporte. Nossos direitos de cidadãos são ignorados ou atacados como os direitos dos torcedores no “Atletiba”.
O controle dos discursos em circulação tem permitido aos monopólios sustentar golpes de estado, invisibilizar e criminalizar movimentos sociais e pautas de direitos humanos, defender políticas danosas aos mais pobres, criminalizar a juventude negra das periferias, entre tantos outros problemas. A diversidade cultural, regional, étnica e sexual presentes em nosso país são tão prejudicadas pelo monopólio quanto o futebol.
Que o “Atletiba” seja o início de uma resistência em defesa do futebol e da comunicação como direitos de todos. Precisamos ampliar essa resistência e o combate ao monopólio midiático, dentro e fora do futebol.
 
**Em nota, o SporTV se isentou da responsabilidade no episódio de ontem, apesar de evidências de que a partida não ocorreu por conta da tentativa de transmissão via internet, segundo disse o 4º árbitro do jogo.
 
*André Pasti é doutorando em Geografia Humana na USP, professor do Cotuca/Unicamp e integrante do Coletivo Intervozes

Pichação carioca: arte ou vandalismo?

Pichação próxima a rodoviária Novo Rio. Foto: Byron Prujansky

A cruzada do governo paulista contra os pichadores ecoou nas mídias sociais e a discussão sobre arte ou vandalismo urbano veio à tona novamente. O recém eleito prefeito João Dória (PSDB) adotou como uma de suas primeiras ações de governo o programa Cidade Linda, que tem como principal objetivo apagar pichações e grafites nos muros da cidade. Após pintar de cinza várias pichações e parte do maior painel de grafite a céu aberto da América Latina, localizado na avenida 23 de maio, vários protestos apareceram nas paredes. Com a reação da sociedade, a prefeitura voltou atrás e anunciou novas pinturas e apoios aos artistas de rua mas a insatisfação popular ficou no ar.
A mídia noticiou que a Secretaria Estadual da Segurança Pública destacou o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), grupo da Polícia Civil especializado em crime organizado, está mapeando pelas redes sociais os locais onde os pichadores se reúnem e planejam uma ação de prisões coletivas. Isso aconteceu em Belo Horizonte em 2015 (veja o protesto dos artistas), quando 15 pessoas foram indiciadas por formação de quadrilha e lojas de tintas tiveram seus materiais apreendidos. A Justiça autorizou a instalação de tornozeleiras eletrônicas nos acusados, que também foram associados ao tráfico de drogas nalguns casos. O ato de pichar prevê detenção de três meses a um ano, além de pagamento de multa, e a partir de 2012 uma lei estabeleceu uma pena mais dura caso a pichação seja contra monumentos ou bens públicos: seis meses a um ano de encarceramento. Ao enquadrá-los no crime de formação criminosa a pena pode chegar a 8 anos de prisão.
Para entender melhor quem são os pichadores e o que pensam, mergulhamos durante duas semanas nesse movimento nas ruas cariocas. Embora com caligrafias diferentes de todas as capitais do Brasil, a cidade maravilhosa é pioneira e toda rabiscada com pichadores espalhados por todos os bairros. A polêmica entre arte e vandalismo continua, e trazemos alguns elementos sobre esta intervenção estética nos muros para ampliar o debate.
Prédio abandonado e todo pichado na Rodovia Presidente Dutra. Foto: Reprodução Internet.

Segundo Paulo Knauss, professor de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), trata-se de uma das expressões humanas mais antigas que nos remete às cavernas pré-históricas: sempre existiu e sempre existirá, pois é uma das formas básicas de expressão livre dos seres humanos. Configura o campo do grafite urbano contemporâneo, cujo aumento da oferta de cores no mercado foi determinante, acrescentou. Suas primeiras expressões nos anos 1970 surgiram com LerfáMú e Celacantoa provoca maremoto, no Rio de Janeiro.
“As motivações e mensagens variam e são acompanhadas pela inovação de técnicas. Pode até ser que o grafite do spray acabe, mas a inscrição livre certamente encontrará outras soluções. Já estão usando cartazes feitos em serigrafia manual, ou o lambe-lambe. E há instalações efêmeras que subvertem os usos dos lugares da cidade”, afirma.
Tanto a pichação quanto o grafite, ainda de acordo com o pesquisador, são fruto de uma iniciação colaborativa não institucionalizada fora do ensino formal das artes: uma base comunitária comum da contracultura. Nesse sentido, envolvem costumes, comportamentos, ideais e outras expressões criativas. Não é à toa que muitos pichadores grafitam e vice-versa, diz. Sua interpretação pode ser comprovada nas Rodas de Rima, como é conhecido o Circuito Carioca de Ritmo e Poesia, onde jovens de vários segmentos, dentre eles os pichadores e grafiteiros, se reúnem por meio do rap diariamente em várias praças públicas da cidade.
Uma radiografia da pichação Carioca
Vários estilos caracterizam o xarpi carioca, como é conhecida a pichação entre eles, com o verbo pichar ao contrário. Tem os que são conhecidos por andarilhos, que andam toda a cidade e espalham geograficamente os seus “nomes” e demarcam territórios. Geralmente são os que picham mais pedras, conhecidas como “eternos”, que são mais difíceis de apagar. Os mais “disposição” são reconhecidos pela altura de suas pichações, seja usando escada, corda ou escalando. Quando sobem no topo de algum lugar, chamam de “beiral”, onde escrevem de cabeça para baixo ou pisam em parapeitos. Nas marquises buscam pichar em cima das janelas, mas alguns prédios também têm “recuados” acima delas. Dependendo da parede, chamam de “pastilha” ou “tintão”, que são os materiais mais usados nas construções. Casas mais antigas também são procuradas, principalmente as de “vidrinho”, um concreto que fica “foscado” e é difícil de apagar. A tinta preto fosco é a mais usada, mas com o avanço do grafite muitas cores surgiram.
Pichadores se arriscam escalando vários andares nos prédios da cidade. Foto: Northe Um.

Tudo depende dos bairros da cidade: na zona sul, por exemplo, têm poucas pichações porque além da quantidade de seguranças e câmeras apagam. Os condomínios pagam a limpeza, que é cara, ao contrário de muitos bairros no subúrbio, Baixada Fluminense e zona oeste. Os pichadores mais “experientes” procuram locais com “nomes” mais antigos na esperança de deixar seu rabisco por mais tempo. Prédios abandonados são muito procurados. Muitas “escoltas” são estudadas antes da “missão” e materiais de pintura, como a lata de tinta com o rolo, também têm sido utilizados para dar mais destaque. Patrimônios públicos e situações que possam sair nos jornais, “dar mídia”, como estátuas em dias de homenagem, são visados. Descer prédios de rappel (corda) e dar “janelada” (escalar andares levantando pelo ombro do parceiro) têm ocorrido de uns anos para cá e são muito comentados.
O pichador VINGA, que atuava na década de 80 e 90, foi o mais conhecido. Seu nome era estampado nos jornais, a polícia o procurava por toda cidade. Invadia sozinho prédios e casas e pichava seus topos, além de várias igrejas e patrimônios públicos. Seu “nome” nos ponteiros do relógio da central o imortalizou na pichação carioca. Dizem que morreu há alguns anos, seus últimos nomes apareceram no início dos anos 2000. Outro famoso era o TANE, mais de 20 anos depois ainda é possível ver seus rabiscos em pedras de quase todos os bairros. Outros “relíquias”, como são chamados os antigos, têm frequentado reuniões de pichadores (local onde são assinadas folhas para quem coleciona pasta e falar sobre o assunto): assinam G80, em referência à geração dos anos 80, e têm caligrafias mais arredondadas.
As siglas das galeras também têm suas singularidades. Algumas organizam pessoas por bairros e outras por afinidades. A 5* (cinco estrelas), criada há alguns anos, tem reunido os mais conhecidos de siglas diferentes da nova geração. Muitas são símbolos, como a Legalize, da zona sul, e a Loucos, da Baixada Fluminense, que têm a letra L com um círculo desenhado. O mundo virtual também tem sido um ponto de encontro: XARPI tem mais de 13 mil membros no facebook, onde postam fotos e comentários. Imagens e vídeos ao vivo estão na moda por lá.
Quem é o pichador?
ISAK era de classe média alta e fez história na pichação carioca. Ao fundo os Arcos da Lapa, ponto turístico da cidade. Foto: Northe
Um.

“Você não tem como classificar o pichador, porque ele pode ser um médico, um advogado ou um bandido. Não tem classe social nem sexo, homem ou mulher, tem até viado e travesti. O pichador é como um ser humano qualquer, está em todos os lugares. A classe social não atinge: o ISAK, por exemplo, que faleceu, era cheio do dinheiro, mas já é o contrário do ZAK, que era mendigo. Não existe classe social, é como se fosse um dom que você vai se aperfeiçoando. E não é influência do meio, porque eu sempre andei com maconheiro e não fumo maconha”, afirmou SEL, de 39 anos, da sigla Filhos da Rebeldia (FR).
Morador de São Gonçalo, um dos locais mais pobres da região metropolitana do Estado e com alto índice de violência, ele é faixa preta em artes marciais e dá aula para crianças. É casado e tem dois filhos, e picha desde a década de 1990. Diz que o vício se tornou um lazer na sua vida, mas nunca deixou de cumprir com suas obrigações. Gostou da adrenalina após ficar observando os muros, e nunca mais parou. Tem “nome” em vários municípios do Estado, além de ter “espancado” a capital. “Trabalho, tenho minha vida social, meus filhos, vivo para eles. Faço mil e uma coisas além da pichação, mas sempre que eu posso pego uma lata de spray e vou pichar”, disse.
De variadas classes sociais, em sua maioria humilde, estão espalhados por todos os bairros. Muitos são motoristas de táxi, uber ou moto táxis. Vários são “vida loka”, vivem vendendo drogas ou furtando e só querem saber de curtir. Nas reuniões de pichadores é possível notar uma média de 30 anos de idade. Assim como no senso comum da sociedade, é a vontade de rabiscar sem muita razão que predomina. Também prevalece os usuários de drogas, principalmente maconha e álcool, mas alguns não usam nada. Tem crescido a inquietação política nas conversas e paredes, mas o egocentrismo e a competição é o que mais os move. A maioria tem ficha na polícia e já apanhou ou passou por situações de risco.
Os entrevistados da reportagem em ação, da esquerda para direita: KEL, SEL, LONG e BLA. Foto: Byron Prujansky

“Quando começou na década de 70 foi diretamente a política, aí depois veio na década de 80 os punks, roqueiros, que queriam pichar mesmo e as frases eram tipo um bônus para além da pichação. Na década de 90 as frases foram mais esquecidas, e de 2000 para cá a pichação virou modinha. Muita gente hoje em dia quer botar o tal do link ao vivo, postar nas mídias sociais. Na nossa época tinha que ralar pra pichar, não tinha nem internet”, acrescentou.
“Hoje o xarpi tem muito a ver com o ego, o cara quer chegar na reunião e ser reconhecido. Falar que é fulano tal, da sigla tal, família tal e pegou bagulho tal. Fugiu o foco de protesto contra o sistema e agora está mais comercial, mais relacionado ao ego e individual. Fica uma coisa muito restrita”, criticou LONG, de 36 anos, taxista, também pai de família e da FR.
“Com certeza a maior parte dos pichadores é de classe social baixa: na zona sul tem menos pichador que na baixada fluminense. Antigamente tinha muito menos mulheres, mas acho que é até por conta do momento que vivemos de uma era feminista em que as mulheres querem, podem e devem fazer tudo”, afirmou KEL, cujo perfil será traçado mais abaixo.
O que um veterano tem a dizer?
Piche do VINGA no relógio da Central. Foto: Reprodução Internet.

Um dos primeiros famosos com suas escaladas e sequências audaciosas foi JONES, parceiro do VINGA. Começou em 1985 num colégio em Vila Isabel, e diz que o berço dessa manifestação é a grande Tijuca, que agrega vários bairros da zona norte. A escalada veio com a emoção e adrenalina de subir nas coisas: ver o “nome” e o pessoal comentar, diz. Hoje com 43 anos, é formado em Educação Física e Direito, e é policial.
“Muitos da minha geração morreram, foram pro tráfico, assalto, desvirtuaram da pichação. É a porta de entrada para o mundo do crime, assim como a maconha pode ser nas drogas se você não tiver uma boa formação. Nunca fumei nem cheirei, mas mergulhei na pichação porque gostava. Na década de 80 era modismo. As meninas no colégio idolatravam”, diz.
JONES acha que a ousadia continua, mas os locais se tornaram mais acessíveis. Tinha menos polícia, mas a rua era mais perigosa. Final de ditadura, o regime estava em transição e ainda tinha resquícios de repressão, diz. Os mais antigos são de 1979, havia muito rivalidade e briga entre as galeras, o que não tem acontecido tanto. “Voltei a frequentar esse ambiente para reencontrar amigos. Depois veio um churrasco e um grupo de whatsapp, então criamos a CC (Confraria do Charpi) com pichadores e grafiteiros antigos. Botamos uns nomes para reativar um pessoal. Você vê que hoje tem mais de cem cabeças numa quinta-feira”, disse se referindo à reunião de pichadores na Tijuca.
A política nos muros da cidade
Frase de protesto do BLA ao lado do Morro da Mangueira, no Maracanã, zona norte. Foto: Arquivo BLA.

De uns cinco anos para cá muitas frases políticas estão aparecendo nos muros. Durante as manifestações de 2013 muitos pichadores estavam envolvidos. BLA, de 35 anos, tem se destacado nessa “modalidade”. Nascido e criado numa comunidade do Méier, zona norte, diz que pichação nasce com a pessoa como se fosse um instinto. Educação é investimento e Quantos professores seriam reajustados com a reforma do Maracanã?, são algumas de suas frases. A que mais gosta é UPP sem projeto social é maquiagem que, segundo ele, espalhou em várias comunidades quando o programa foi implementado. “Reprimiram a bandidagem, mas esqueceram que essas crianças cresceriam. Hoje está mostrando a realidade: a UPP não serviu de porra nenhuma, e a menorzada vai lá na Lagoa mata médico volta e nada muda”, criticou.
“Uma mina me falava: só não entendo sua disposição de subir em lugares tão difíceis e de tão boa visibilidade e escrever uma coisa que ninguém sabe ler. Ela me deu um fuzil! Peguei a fita, trouxe isso em prol da sociedade. Comecei a passar informação que não passa na televisão pelas paredes, resgatei daonde a pichação nasceu durante a ditadura. Só escrevo em lugar com muita circulação, e escrevo porque vejo todo mundo sofrer. Geral sem hospital, sem escola, sem nada. Juntei o útil ao agradável. Isso faz parte da nossa educação, que está um lixo”, criticou o motorista de Uber.
Sua visão ficou ainda mais crítica quando trabalhou numa secretaria da prefeitura retirando viciados em craque no entorno de comunidades. Segundo ele, era tudo maquiagem, foi quando começou “a enxergar como o sistema funciona”. “Educação é a base de tudo, se começar desde cedo a nação vira potência. Fiz uma campanha aos pichadores escreverem fodendo o sistema, e teve uma galera que representou. Um outdoor para botar a propaganda vale milhares, enquanto com uma lata de spray consigo transmitir uma mensagem muito mais forte e pode ficar 10 anos em cima dele. Olha o poder da pichação: comunicação pura!”, disse.
Participação Feminina na Pichação
Apesar de a maioria ser masculina entre os pichadores, algumas mulheres se envolvem na tribo. A KEL, de 28 anos, é a mais conhecida. Moradora da Glória, na zona sul, estudou em colégio de classe média alta, onde começou a se interessar pela pichação. De lá para cá pichou diversos bairros da cidade, inclusive outros municípios do Estado. Escalando lugares que muitos homens não têm coragem. Perdeu dois namorados e uma melhor amiga nesse caminho. Acha que a pichação sempre será uma forma de protesto, embora nem todos coloquem frases nesse sentido.
“Peguei essa vontade pela Naty, que criou a IF (Inferno Feminino), depois conheci o CAIXA através de uma amiga e entrei para VR (Vício Rebelde). Namoramos 3 anos, mas mataram ele pichando em São Gonçalo. Só não fui porque era minha primeira semana na faculdade de moda. Não queria mais isso, mas a pichação já estava muito forte na minha vida”, lembra.
Pichação do LEO, rapaz de classe média alta formado em comunicação, que morreu ao cair da janela de um prédio no Grajaú, na zona norte. Foto: Byron Prujansky.

Já com vários amigos, de muitas classes sociais e bairros diferentes, foi respeitada. Começou a ficar com o VUCA, da Ilha do Governador, um dos fundadores da 5*. “Tu pensa que nunca vai acontecer de novo, e o moleque cai da marquise. Essas histórias de morte em xarpi sempre aconteceram: SEIF, CORVO, LEO, etc. Aí você vê que a pessoa pode falhar também”, conta. Foi com ele que despertou seu lado empresarial. Na época existia o Xarpi Rap Festival, evento que reunia pichadores para votarem nos melhores de cada estilo. Os vencedores ganhavam medalhas e latas de spray, e com a cerveja vendida e a entrada a 1 real tiravam um trocado.
“Ninguém conhecia o Filipe Ret, que foi uma das atrações do meu aniversário. O bagulho lotou, então resolvi fazer a XARPI (com mais de 80 mil seguidores no facebook) já que não rolava mais Batalha do Real e eram poucos eventos de rap na cidade. Virou festa de rap e pichação com público feminino, que era raro nesse meio. Chamei grafiteiros e teve Criolo, Racionais, Emicida, Projota, Marechal, etc. Em 2010 a XARPI virou a maior festa de rap do Rio. Se transformou em marca também, hoje vendemos boné e camisa no Brasil inteiro. Lotou o Circo Voador duas vezes”, lembrou.
Por sorte não ficou com nenhuma cicatriz ou ficha criminal, e seus rabiscos ainda são vistos nas ruas. “Sempre tive amigas patricinhas e amigos até na Baixada. ‘Rodei’ várias vezes, mas sempre teve desenrolo. Pichação vai mudando, mas não acaba. Tem métodos de limpar mais rápidos, câmeras, e tem dificultado. Mas estão cada vez mais suicidas, com corda, janelada, etc. É maior guerra de ego, vaidade pura. Hoje não estou nem aí, mas nunca vai sair de mim. Perdi muitos anos me arriscando, e depois de vários prejuízos resolvi ganhar com isso. Transformei uma cultura discriminada em trabalho”, opinou.
Governo paulista versus pichadores
Uma nova geração, principalmente da sigla Versátil da zona oeste, chega a escalar 5 andares para escrever seus nomes na parede. Foto: Byron Prujansky.

Todos os entrevistados são obviamente críticos ao que está acontecendo em São Paulo. Apesar de o governo carioca também ter ido para a direita com a entrada de um bispo no governo, Marcelo Crivella (PRB), todos acham que essa caça às bruxas não vem para o Rio de Janeiro. A KEL acompanhou o que aconteceu em Belo Horizonte, e chegou a conversar por facebook com uma menina que ficou presa em casa por meses usando tornozeleira eletrônica.
“Como se ela fosse um grande perigo para a sociedade, porque foi pega pichando com uma galera. Aqui no Rio nem sei se vai acontecer. Agora foi São Paulo, que é como se fosse um patrimônio da cidade porque a pichação é uma coisa muito forte. Tem reconhecimento internacional, e muita gente de arte considera arte. Agora entrou essa galera careta no governo de SP, os caras coxinhas máxima, óbvio que eles vão ser contra. A percepção de arte deles é totalmente diferente de quem aprecia a verdadeira arte de rua e entende de arte contemporânea. Vi uma foto do Dória pousando sorridente ao lado de um quadro do Basquiat, na casa dele. Chega a ser engraçada essa ignorância: um dos maiores artistas dessa geração, que ganhou fama pichando muito muro em NY”, criticou.
Ela defende que o governo é tão mal exemplo, que desde pequenos todos vêem injustiças e os muros acabam sendo uma forma de expressar essa rebeldia e mostrar a discordância com tudo o que está acontecendo. “Por mais que hoje em dia as pichações tenham muito menos teor político que na época dos nossos pais, que foram criados na ditadura, acho que toda pichação por trás tem um lado político. Mesmo que não tenha uma frase escrita”, complementou.
“Se eles tentarem apagar, os pichadores vão reagir e querer fazer um monte de coisa. É uma mistura de rebeldia com arte, é um jeito de a gente mostrar ao governo que não estamos nem aí para ele”, disse o SEL.
Não há dúvida que a ação do Estado é mais condescendente com o graffiti do que com a pichação, pontua o professor Paulo Knauss. Além disso, sua criação é mais demorada enquanto a pichação tem uma marca marginal, que caracteriza o processo criativo sem consentimento. “O graffiti pode ser absorvido pelo mercado de arte, enquanto a pichação não encontra essa possibilidade de aceitação social”, explica.
As “ferrugens” embaixo dos viadutos também são muito visadas pelos pichadores, que descem dependurados em cordas de alturas elevadíssimas. Foto: Passei e vi.

Para ele, uma ação do Estado de promoção ou repressão precisa levar em conta que estas são manifestações de um quadro de vida social amplo e complexo do mundo contemporâneo. “Se associa à afirmação da juventude como agente da sociedade, que se distingue do movimento engajado e ideologicamente orientado de 1968. Passa por sensibilidades originais, que afirmam territorialidades alternativas na cidade, fruto de modos de vida e horizontes de expectativas que não refletem os padrões institucionalizados”, conclui.
“Não tem como fazer um museu da pichação, se o sistema eternizasse dessa forma como fazem com o mural de grafite seria legalizar. Só que a pichação é a parada mais rebelde, tem que ser totalmente contra o sistema. Não tem como o sistema abraçar a pichação”, disse o grafiteiro ACME, que é um dos mais conhecidos na cidade pela sua arte.
Para ele, o que está ocorrendo em São Paulo é uma jogada para a prefeitura lavar dinheiro. “Apagou tudo e agora vai contratar uma nova galera para enquadrar as ideias e os temas da rapaziada. Vão fazer um movimento na cena, mas tem uma galera fazendo resistência. Eles lavam dinheiro nessas produções, porque o maluco vai botar um preço super alto contratando produtor, grafiteiro e a galera vai acabar se rendendo por causa de tinta e material para trabalhar. Quem é da rua mesmo e está na resistência não vai querer pintar não, vai bombardear aquela porra toda”, criticou o grafiteiro.
(*) A reportagem utilizou os codinomes dos entrevistados para apresentá-los.